o riachense

Sbado,
27 de Abril de 2024
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Célia Barroca

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O cheiro dos livros e os avatares
Há dias, à procura de um texto, abri um livro que como muitos outros, teimosamente, continuo a guardar: “O Barão”, de Luís de Sttau Monteiro, uma edição de 1964. (Também guardo “O Barão” de Branquinho da Fonseca, que recordo ter lido com grande prazer). Depois de abrir o livro, percebi por que razão me custa tanto separar-me desta e doutras relíquias. Para além das letras, das ideias, das histórias… os afetos. O cheiro que se desprendeu das folhas já muito amarelecidas, trouxe não sei que memórias, que me apeteceu ficar por mais uns instantes no meio delas, folheando o livro, e cheirando cada folha como se de uma flor se tratasse. Depois, algumas memórias começaram a tomar a forma do interior de uma carrinha carregada de livros, e a atenção de dois homens, dois intelectuais solícitos, que todos os meses contribuíam para abrir um bocadinho mais o leque das minhas “escolhas literárias”. 
Ah! O cheiro dos livros! Os de contos, os velhos, com cheiro a passado que não vivemos mas vive em nós recriado, os novos com cheiro a tinta fresca e a promessas de novidades!
Que bem que sabem as memórias da carrinha carregada de livros, do acolhimento e aconselhamento do Sr. Vítor e do seu colega, encarregados de me tornar a mim, e a muitas outras pessoas, amantes da literatura, da poesia, de saberes, universos que inconscientes continuam dentro de nós, juntamente com os cheiros, as texturas, as cores, e fazem dos livros objetos amados, desejados. Temente do seu desaparecimento, como o desaparecimento de tantas outras coisas da história da humanidade, porque a modernidade de todas as épocas não perdoa, imagino um livro ou um seu “avatar”, sem cheiro, sem textura, que para além das palavras, das ideias, das histórias, não premei as sensações. E esse divórcio entre o intelectual e o sensitivo, sugere-me um vazio que não consigo imaginar como poderá ser preenchido. Talvez esteja longe o fim dos livros em que podemos pegar e manipular, se retiram dos escaparates, se folheiam. Até lá, saboreemos gostosamente os que ainda conseguimos comprar, e à cautela guardemos religiosamente aqueles sem os quais nos seria difícil viver. E, claro, partilhemos os possíveis, e com eles, o prazer das sensações que já foram nossas e podem ser de outros. 
Foi afinal isso que o senhor Gulbenkian fez. Um homem rico, estrangeiro, espalhou pelo território português carrinhas carregadas de livros, histórias, ideias, saberes, afetos, em troca apenas da “imortalidade” do seu nome e certamente do prazer da partilha, e essa ideia traz-me a tentação da nostalgia de um tempo que não era melhor do que este, mas no qual a umas tantas crianças foi dado o prazer de sonhar. Estamos talvez irremediavelmente no tempo dos “avatares”. Desfrutemos do cheiro dos livros, e das ideias neles contidas, originais e imortais, num tempo em que alguns anacrónicos “barões”, talvez gostassem de subscrever o poema que David Herbert Lawrence* escreveu, num tempo muito antes das carrinhas carregadas de livros: 
Democracia

Sou democrata na medida em que amo o livre sol nos homens
E aristocrata na medida em que detesto as possessivas tacanhas criaturas.

Amo o sol em qualquer,
Quando o vejo na fronte,
Claro, sem temor, ainda que frágil.

Mas, quando vejo os pardos homens prósperos, 
Hórridos e cadavéricos, inteiramente sem sol,
Como obscenos escravos prósperos saracoteando-se mecanicamente,
Então sou mais que radical, desejo a guilhotina.

E quando vejo os que trabalham,
Pálidos e vis como insectos, às corridas
E como piolhos vivendo, com dinheiro contado
E sem nunca erguer os olhos,
Então, como Tibério, desejo que a multidão tivera uma cabeça
Para decepá-la de um só golpe.
Eu penso que, quando as gentes perderam totalmente o sol,
Não têm direito a existir.  

Felizmente que o senhor Gulbenkian, num país onde o sol se perdera para muitos, não pensava em decepar cabeças, mas antes em iluminar as cabeças da multidão anónima. Neste tempo, de novos barões, do que precisávamos mesmo, era de uns avatares do senhor Gulbenkian, e de carrinhas carregadas de amor aos livros e aos homens.
* Importante escritor inglês (1885-1930) (autor do célebre romance "O Amante de Lady Chatterley") a quem são atribuídas ideias filosóficas com implicações políticas de extrema-direita.

Célia Barroca                 Abril de 2012

Actualizado em ( Domingo, 22 Abril 2012 20:56 )  
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