Um pequeno desastre
A ideia é boa e fica bem no papel: partir da base, aproximar o poder das pessoas, descentralizar, assegurar que todos podem participar nas decisões governativas e administrativas. Para isso, inventaram-se e espalharam-se Juntas de Freguesia e Câmaras Municipais. Mas tal como todas as boas ideias, levá-las do papel à prática pode também conduzi-las a pequenos desastres. Foi isso que aconteceu nos últimos 40 anos, após a anterior “refundação do Estado”, ocorrida entre 1974 e 78.
Porque não é no espaço de uma geração que se mudam hábitos tão entranhados como aqueles que perduraram durante o regime fascista, estamos hoje numa situação de total asfixia entre um poder central conivente com os grandes interesses económicos, instalados há décadas, e um poder local que faz exactamente a mesma coisa, mas numa escala mais “doméstica”. Enquanto havia dinheiro, estava tudo bem. As obras faziam-se de preferência 6 meses antes das eleições, com as autarquias a publicar caderninhos onde listavam as obras em curso, que não são mais do que pequenos folhetins de propaganda. Agora que o dinheiro falta, culpa-se a crise esquecendo que no centro deste problema está precisamente a dívida. Esta é uma crise gerada por dívida, e por quem a contraiu: consumidores, empresas, investidores, bancos, autarquias, governos. A bolha rebentou.
Portanto, cá estamos novamente a “refundar o Estado”, tendo como justificação o já gasto argumento da “contenção de custos”, que me parece ser demasiado tardio. Uma das medidas é agregar, ou extinguir, freguesias. Não vai ser o caso de Riachos, embora a nossa freguesia sirva aqui de exemplo para sustentar a minha opinião. Quantos de nós já esteve numa assembleia da Junta ou da Câmara? O que é que aí se debate? Que possibilidade de intervenção temos? Qual a extensão dessa intervenção? Qual a utilidade de participar nessas assembleias? Porque é que há mais pessoas todas as semanas a ver jogos do Atlético Riachense do que a exercer o seu direito de participação política?
Para se desenhar uma resposta com total exactidão deveríamos fazer estas perguntas a cada habitante de Riachos. No entanto, arrisco desde já algumas hipóteses: a) sugerir, reivindicar ou participar nas assembleias tem um efeito nulo, b) não há noção do tipo de propostas que se possam apresentar, c) qualquer sugestão esbarra sempre numa dotação orçamental reduzida, d) o diálogo com os autarcas facilmente cai numa conversa de surdos. Por estas razões, e porque nesta situação o dinheiro dos contribuintes é mal gasto (uma vez que não tem qualquer utilidade), não posso estar contra a extinção de freguesias. Por outro lado, Portugal é um país tão pequeno e com tão pouca gente que dificilmente se justifica a quantidade de Juntas e Câmaras por aí espalhadas. Veja-se, por exemplo, o caso do Entroncamento, o segundo município mais pequeno do país, no qual que se confundem as noções de cidade, concelho, infra-estrutura, e até identidade.
Qualquer pessoa mais desprevenida dirá imediatamente que se eu assumir esta posição estou a apoiar as medidas de um governo “de direita”, anunciadas por um ministro “prepotente”. Nada disso. Não alinho com frases feitas, nem maniqueísmos fáceis, e muito menos com bandeiras políticas. Tenho, aliás, uma certa aversão à classe política, ou a qualquer forma de poder, com o qual tento conviver o menos possível. Mas se sou obrigado a pagar impostos, para não me tornar num fora-da-lei procurado nos 308 (!) municípios portugueses, já agora faço questão que o dinheiro do meu trabalho entregue ao Estado seja bem gasto, coisa que infelizmente não acontece. Por esse e outros motivos, sou da opinião de que quanto menos Estado, tanto melhor.
Cabe a cada um de nós desenvolver a sua noção de cidadania, assumindo um lugar social de maneira esclarecida, consciente, autónoma e ética. Mas isso leva muito tempo, e implica um sistema educacional mais evoluído do que aquele que temos. Para os próximos tempos, o que se prevê é um retrocesso a todos os níveis. Resta-nos fazer o possível para não perdermos o potencial de mais uma geração.