Prioridades invertidas
Temos um caso recente de sucesso na obtenção de emprego! É do conhecimento público que um cidadão que se encontrava desempregado há dois anos entregou uma carta na Provedoria de Justiça, alegando que não pode pagar impostos. Fez as contas e o pouco dinheiro que tem quase não chega para dar de comer aos seus filhos. Invocou o artigo 21 da Constituição. Dois dias depois de ter sido noticiado este interessante protesto, o desempregado foi chamado a uma entrevista de emprego e foi contratado. Isto pode levar-nos a pensar que, no limite, se todos os desempregados seguirem este exemplo, alguns dias depois todos eles terão um contrato de trabalho à sua frente, para assinar. Afinal, um dos princÃpios do direito é a igualdade. Ou pelo menos, assim deveria ser.
A questão de fundo que aquele caso levanta está implicada no funcionamento da sociedade como um todo, e ataca directamente as suas bases. Nunca se falou tanto em inconstitucionalidade como nos últimos meses, e não é motivo para menos. É na Constituição que estão os direitos e obrigações fundamentais de qualquer um de nós. Sendo assim, será que a sociedade em que vivemos está a tornar-se inconstitucional, ou tudo está a tornar-se ilógico? Aparentemente, ambas. E a causa está na maneira como a economia se sobrepõe a tudo o resto, invertendo prioridades e relativizando a importância das coisas. O que é mais importante, quando os rendimentos que temos mal chegam para cumprir as obrigações familiares? Devemos primeiro pagar os impostos e passar fome? Ou não pagamos os impostos, os nossos bens são confiscados pelo Estado, e continuamos a passar fome? Que de lógica é esta?
Consideremos que os novecentos mil desempregados que existem em Portugal entregam amanhã outras tantas cartas na Provedoria da Justiça, apresentando a mesma alegação: não podem pagar impostos porque precisam de alimentar a respectiva famÃlia. Consideremos que os vinte milhões (!) de desempregados em toda a Europa fazem uma acção conjunta. Imaginemos ainda que este caso segue até à s últimas consequências, e chega ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Que legitimidade têm os Estados de exigir aos seus cidadãos que paguem impostos mesmo que para isso passem fome ou não possam construir uma famÃlia? Responder a esta questão implica abrir uma brecha profunda no actual sistema, e começar de uma vez por todas a redefinir o modelo social em que vivemos.
Para a maior parte de nós, que não somos especialistas em Direito nem em Economia, parecer-nos-á óbvio que o rendimento das pessoas deve assegurar em primeiro lugar, e acima de tudo, uma vida com condições dignas do século em que vivemos. Quem não se lembra de ouvir o Presidente da República afirmar que 1.300 euros mensais não lhe chegariam para pagar as despesas correntes? Ele esquece-se que o salário médio em Portugal é inferior a esse valor. Este é, portanto, o ponto a que chegamos. Há uma evidente incompatibilidade entre os princÃpios fundamentais de uma sociedade e os mecanismos que a regulam: uns ganham milhões com dinheiro dos contribuintes e vivem num luxo obsceno, outros não conseguem alimentar a famÃlia e ainda por cima são obrigados a pagar impostos. Isto é absolutamente inadmissÃvel. Estamos a regredir duzentos anos, aproximando-nos ao Antigo Regime.
Existe, porém, uma possibilidade de contestação por via legal, com repercussões directamente proporcionais aos milhões de pessoas que estão sem emprego. Por algum motivo, e não terá sido por acaso, aquele cidadão português teve emprego dois dias depois de ter apresentado o seu protesto. É que se isto avança, o resultado colocaria em causa a própria classe polÃtica e a sua clientela. E estes, como sabemos, têm o mesmo modo de actuação que as máfias criminosas.