Descrédito nos partidos
Um estudo de opinião divulgado recentemente pela OCDE revela que menos de 10% dos portugueses confiam nos partidos políticos. É o registo mais baixo do nível de confiança da sociedade na sua classe política. Se colocarmos de lado a relatividade dos números e fizermos contas redondas e simplistas, podemos ligar alguns pontos lógicos. Consideremos as últimas eleições autárquicas como exemplo: apenas 50% dos eleitores exerceram o seu direito de voto; destes, 10% confiam nos partidos, restando 90% de eleitores que votaram mas não acreditam em quem votaram. Por aqui, depreendemos que somente uma parte residual do eleitorado se mostra convicto das suas opções. Ora, isto é intrigante e começa a revelar algo menos óbvio.
Importa ir além da infantilidade de simplesmente não gostar de quem nos trata mal. Isto é um comportamento muito primário em democracia, se bem que a democracia em Portugal seja uma criança, metaforicamente falando.
Democracia pressupõe esclarecimento, pressupõe cidadãos conscientes das suas opções, escolhas, e respectivas consequências. Mas democracia é também um modo de vida, uma profissão, uma carreira movida por interesses particulares daqueles que se propõem representar os eleitores. Democracia implica uma organização social em que a educação, o acesso livre a um ensino livre deve ser um pilar central. Quanto melhor e mais generalizado for o acesso a um ensino dito de qualidade, mais se proporciona esclarecimento, e com isto se elevam os padrões sociais.
Ao fazermos aquelas contas simples, e ao vermos que 90% dos votantes não acreditam em quem votam, isto é verdadeiramente dramático. Aliás, antes das últimas eleições, a frase mais ouvida entre a gente era: “para quê votar noutro, se já sabemos quem vai ganhar?” A um descrédito na classe política, junta-se desnorte, desinformação, e uma exagerada dose de demagogia. Como causa deste estado de alma está não só a acção dos três únicos partidos que têm governado Portugal desde a consolidação democrática, mas também aqueles que não têm conseguido construir ou contribuir para um projecto de governabilidade de um estado social, e com isto refiro-me à facção de esquerda.
A crise existencial dos partidos de esquerda poderá dever-se concretamente à incapacidade que têm revelado em propor um modelo social viável e governável. Não creio que isto se deva à inadequação dos ideais ou dos princípios de esquerda, antes pelo contrário. O problema estará numa mentalidade altamente conservadora que caracteriza a sociedade portuguesa, aliada a um conjunto de valores espirituais, que em conjunto constituem obstáculos sérios a uma sociedade esclarecida, igualitária e sustentável. Isto não é novidade, e tem sido discutido em espaço público.
O que é irónico neste ciclo de democratização que temos vindo a modelar, é que a esquerda iniciou um processo revolucionário mas nunca governou. Como sabemos, o partido que se auto-designa por socialista é apenas uma figura de retórica, tal como o partido que se auto-designa por social-democrata, porque na prática ambos prosseguem linhas de acção à direita, protegendo elites conservadoras e tradicionalistas, o que nada tem a ver com socialismo ou social-democracia. Devido principalmente a estes dois partidos, mais de 90% da população deixou hoje de acreditar em toda a classe política, e isto acaba por incluir aqueles que nunca governaram e que desesperadamente chamam de populismo às formas como os cidadãos expressam o seu desagrado.
Nas últimas eleições autárquicas foi perspicaz, portanto, a estratégia de desviar a atenção dos partidos, renegando filiações e simpatias, e mascarar candidaturas como independentes. Em Riachos resultou. Dos mais de quatro mil eleitores, pouco mais de setecentos elegeram o executivo da freguesia.
Isto é democracia, ou melhor, isto é a democracia que tem vindo a ser construída. Quando a esquerda reclama e culpabiliza os cidadãos de não evitarem este estado de coisas ao não votarem, nem se apercebe que está a dar um tiro no pé, porque afinal se não tem representatividade, isto é, votantes, isso deve-se acima de tudo à sua própria acção e conteúdo do discurso político.
Posso parecer convencional ao balizar esta opinião nos dois pólos ideológicos de referência (a esquerda e a direita), mas se o faço é porque, quer o discurso político, quer o mediático, de uma maneira geral, parecem esbater-se numa amálgama de argumentos e contra-argumentos perfeitamente triviais, sem alcance prático, e que pouco mais fazem do que alimentar uma forma de organização política que não está a dar resposta às grandes questões sociais e aos problemas subjacentes. Vejo, assim, utilidade em rever e esclarecer alguns princípios ideológicos de fundo, sobretudo para que 90% da população portuguesa possa vislumbrar em que tipo de sociedade quer viver, e quais os modelos políticos que podem ser alcançados. Isso, sim, seria um caminho para uma reforma do Estado, e principalmente para recuperar um sentido de cidadania.