Da desjudicialização ao encerramento dos tribunais
A recente aprovação do chamado «novo mapa judiciário», que encerrará 20 tribunais e transformará outros 27 em inúteis secções de proximidade, apenas poderá surpreender e indignar os mais distraídos.
O encerramento dos tribunais é uma consequência previsível, e até natural, do paulatino processo de desjudicialização da justiça que ocorre em Portugal desde há uma dúzia de anos. Com a influência de obscuros interesses económicos, com o empenho de fanáticos neoliberais e com a cumplicidade ou alheamento de muitos irresponsáveis (incluindo nalguns momentos a própria Ordem dos Advogados).
O fenómeno da desjudicialização consiste na privatização crescente de competências que pertenciam aos tribunais. Muitas destas competências foram sendo transferidas para instituições privadas, esvaziando cada vez mais o campo de actuação dos tribunais, com mais custos para os cidadãos e menos qualidade dos serviços prestados.
A privatização da acção executiva, que regula os delicados processos de cobrança de dívidas, foi o primeiro descarado passo neste sentido, ao entregar essa competência a profissionais liberais, alguns deles nem sequer licenciados em Direito.
Seguiu-se a transferência de muitos processos de direito da família, que têm vindo a ser retirados dos tribunais e remetidos para as conservatórias do registo civil.
Continuou-se com a privatização dos processos de despejo do arrendamento urbano (para o denominado Balcão Nacional do Arrendamento) e até com a privatização dos processos de inventário, que se destinam a resolver problemas de partilhas de bens por morte ou divórcio (para os cartórios notariais também eles entretanto privatizados).
Ao mesmo tempo fomentou-se a criação dos julgados de paz (outro colossal embuste), dos tribunais arbitrais e dos centros privados de mediação de conflitos laborais, familiares e criminais, esvaziando ainda mais as competências dos tribunais e oferecendo menores garantias de isenção e imparcialidade aos cidadãos.
Não é por acaso que os juízes dos tribunais arbitrais são escolhidos pelas partes e muitos deles são advogados com interesses menos transparentes em grandes sociedades de advogados com relações promíscuas com o Estado, a Assembleia da República e grandes grupos económicos.
A desjudicialização e a privatização da justiça é um escândalo nacional que afasta os cidadãos do acesso à justiça, encarece brutalmente os seus serviços, enfraquece as garantias de isenção e imparcialidade e diminui a qualidade das decisões.
Todas estas gravosas medidas de desjudicialização foram tomadas pelo Estado sem o protesto merecido e devido. Prevaleceu o fetiche da manjedoura para uns (não se conversa com a boca cheia) e o silêncio da mansidão bovina para outros.
Depois da hecatombe da desjudicialização e da apressada privatização da justiça, ainda há quem só agora vislumbre os malefícios do encerramento dos tribunais.
Como escreveu Camões: “O favor com que mais se acende o engenho / Não no dá a pátria, não, que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza”.