o riachense

Sexta,
26 de Abril de 2024
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Riachos-Paris: um salto de oito dias

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Alguns dos operários que trabalharam na construção de um edifício da previdência situado próximo do Arco do Triunfo, em Paris. A fotografia foi tirada quando ficou concluída a primeira fase (1973), vendo-se à direita José Mendes dos Santos.

Contos de emigração (1)

Era o dia 11 de Setembro de 1967 e começava na estação de comboios de Riachos a sua vida de emigrante. Nesse mesmo dia tinha comprado um saco de ténis para pôr toda a bagagem: uma muda de roupa de cima e três mudas de roupa interior.
Em casa ficava a mulher de 28 anos e uma filha quase a iniciar a escola primária.
José António Mendes dos Santos, com 34 anos, conhecido entre os amigos por Zé Manha, partia para um destino incerto em França, acompanhado por quatro companheiros de aventura. Além da roupa, levava 9 contos de reis, o bilhete de identidade, o endereço de um outro riachense em Paris, algum medo, o nome do passador e muita esperança de melhorar a vida.

A viagem

Íamos cinco no comboio de Riachos para Castelo Branco. Era eu, o Luís Totiço, o Zé Gaiteiro, o Luís Neco (cunhado do Luís Totiço) e um Alentejano que morava no Malhou. 
Quando chegámos a Castelo Branco, apanhámos um autocarro para a Aldeia de Bispo onde estava o passador, que era de Foios, e que nos passou a pé para uma aldeia espanhola, Navasfrias.
 
Parecia fácil, mas, já em Espanha, a polícia não lhes emitiu os salvo-condutos e regressaram a Foios. Com novo passador atravessaram um ribeiro, voltaram a Navasfrias e depois Ciudad Rodrigo, onde se juntaram mais três portugueses e encontraram um espanhol que procurava trabalhadores para uma barragem nas Astúrias. 
 
Decidimos ir. Eu fui falar com o espanhol que nos levou a numa pensão e deu instruções para comermos e dormirmos. Ficámos dois dias e, ao terceiro, não chegámos a dormir porque o espanhol apareceu à hora de jantar para irmos imediatamente. “Comem pelo caminho porque temos que sair agora”, disse ele. Já tínhamos um autocarro à espera com 20 ciganos espanhóis. Entrámos nós, os 8 portugueses, e seguimos para a barragem das Astúrias. Quando chegámos estava a nascer o sol. 
 
Não chegaram a iniciar o trabalho porque decidiram ir para Leon apanhar o comboio para França. Em Leon, para comprar o bilhete de comboio havia três bichas e a polícia a observar. Alguns arriscaram ir de comboio e conseguiram passar sem serem apanhados. 
 
Eu não tinha documentos e tive medo de ser apanhado, de modo que fiquei com o Alentejano e voltámos os dois para a barragem à espera de melhor oportunidade.

E a história desta difícil travessia de duas ditaduras continua. 
Zé Manha vai trabalhar na barragem das Astúrias, recebe 150 pesetas por dia, mas paga 75 para dormir e comer. Dois dias depois, um acidente grave com trabalhadores fá-lo mudar de ideias e na manhã seguinte recebe o salário do dia, pega na bagagem, anda 8 Km a pé e apanha, por fim, o comboio para Irun, sempre com o seu companheiro alentejano.
A França era ali ao lado. Mais uma noite de sobressalto, mal dormida, mais um taxista espanhol e, por fim, Hendaia, já na França, onde consegue o primeiro documento da polícia francesa que lhe permite essa coisa hoje tão simples que é a liberdade de se deslocar dentro de um país.
A partir de Hendaia segue de comboio para a Gare de Austerlitz, em Paris, onde chega às 11 da noite. É muito tarde, não tem ninguém à espera e já não há autocarros àquela hora. A solução é de novo um táxi. Mostra-se o papel com a morada trazida de casa e o motorista lá os leva. É um foyer (prédio com quartos para imigrantes) mas não conhecem ali ninguém, já passa da meia-noite, decidem não bater à porta e passar a noite numa paragem de autocarro, mas o vento e o frio são tantos que não conseguem adormecer. Regressam ao foyer e vêem uma porta aberta que dá para uma cave cheia de bicicletas dos imigrantes. Entram, juntam meia dúzia de barrotes ligeiramente inclinados, põem um jornal por cima e tentam dormir. Não conseguem dormir mas sempre fogem do vento frio da noite parisiense.
No dia seguinte, manhã cedo, procuram a direcção de uma pessoa que os pode auxiliar. Aí são aconselhados a ir de autocarro para Versailles onde há trabalho. Chegam perto, em Villepreux, onde alguém lhes diz “estão a ver aquela grua? Vão lá que eles estão à procura de pessoal”.
E vão. E conseguem trabalho. 
Era o dia 20 de Setembro de 1967. 
Nove dias depois de ter saído de Riachos, Zé Manha, José António Mendes dos Santos, chega ao seu primeiro destino em França. A partir de agora passará a ser o senhor Dos Santos, José António, português, servente, a trabalhar numas obras de tratamento de esgotos perto de Versalhes.
 
«Não me arrependo. Trabalhei muito, mas melhorei a vida, conheci amigos e nunca me desliguei de Riachos»
 
O trabalho

Ainda não tinha documentos quando comecei a trabalhar. Foi então que fiz o meu primeiro contrato por 3 meses.Precisava de um documento do patrão a confirmar que tinha trabalho e só depois é que podia ir à polícia onde me passavam a Carta de Séjour.
Eu não sabia falar francês, não conhecia nada e pedi a um outro português que me acompanhasse, “ó senhor António eu pago-lhe o dia, pago as horas e pago o transporte, mas preciso da sua ajuda”. Ele foi comigo a Versalhes e, quando chegámos, eu disse-lhe “você é que sabe falar francês, vamos comprar qualquer coisa para comer”. Comprou uma baguete, uma tranche de fiambre – foi a primeira vez que vi fiambre – fruta e uma garrafa de vinho. Comemos e quando estávamos a chegar à polícia de Versalhes quem é que eu encontro? O Totiço e o Zé Gaiteiro que tinham chegado 8 dias antes de mim. Foi uma festa!
Estive sete meses na construção deste filtro de esgoto e depois fui deslocado para outra obra dessa empresa em Champigny. Aí passei da categoria de servente para pedreiro com um novo chefe. Foi com este chefe que aprendi a perceber o plano do ferro. Ele passava-me o desenho para as mãos e não era preciso mais nada.
Mais tarde, em 1970, queriam que fosse trabalhar para a Bretanha, mas não aceitei porque já estava à espera que a minha mulher fosse viver comigo. Então o chefe de equipa, espanhol, disse “eu vou arranjar trabalho para a gente”. E conseguiu, numa empresa em Versalhes, mudámos logo na semana seguinte e até fui aumentado, passei a receber 7,50 francos por hora. Estive lá até 1972.
Depois arranjei outro trabalho em Paris onde estive 7 anos e meio na construção de um edifício da segurança social.
Mais tarde comecei a trabalhar em agências de trabalho, por volta de 1980.
Em 1985 a agência recebeu um telefonema de um pequeno patrão que precisava de um pedreiro. Era numa vila pegada a Paris, chamada Saint-Ouen. Esse patrão conhecia o meu trabalho e estive lá até à reforma.
Reformei-me com 60 anos de idade (1993) mas ainda lá estive mais 5 anos. Eu até menti à minha mulher durante 5 anos para esperar que ela fizesse a idade para trazer a reforma completa.

A habitação
 
No meu primeiro trabalho a construir os filtros dos esgotos, a minha casa, chamam-lhe eles um bungalow, como é que se chama aqui? 
 
Penso que é um contentor. 
 
Sim, sim é um contentor, dos que se usam agora para as escolas. Pertencia à empresa e ficava junto ao local da obra, dava para quatro pessoas, com camas, armários e um espaço para cozinhar com lava-loiças inox e um fogão.
Enquanto estive sozinho, vivi nessas condições, sempre junto ao local das obras.
Quando a minha mulher lá chegou fui viver para um quarto num hotel na Rua S. Dennis, uma das mais famosas do mundo. Não sabes porquê?
 
Realmente, não sei…
 
É famosa por causa da prostituição. Mas no hotel onde estávamos não havia nada disso, era todo para emigrantes, estava lá o Julião Perna Atrás, o José Luís Direito e muitos outros portugueses.
A minha mulher depois conseguiu uma “praça” de porteira na Rua des Petits Carreaux. Estivemos aí 3 anos, até ela conseguir um segundo lugar de porteira na mesma rua, mas, para ficar com o lugar, teve que dar 6 mil francos a um português que ia sair. Era assim que funcionavam estes lugares de porteiras. Ficámos nessa casa até regressarmos a Riachos.

O salto final
 
Zé Manha conta as muitas histórias que se ligam entre si e parece que não têm fim, graças à sua prodigiosa memória. Nas suas palavras quase adivinhamos o cheiro do bacalhau assado e do gasóleo, o som do “pouca-terra” do comboio, dos martelos da obra, da música das festas, quase sentimos nos ossos as tremuras do frio de Paris e dos medos do desconhecido. Mas, afinal, por que razão se decide ir para França?
 
Olha, fui por 3 motivos. Primeiro eu queria melhorar a vida. Em 1961 a minha mulher teve uma anemia grave no sangue, ainda me empenhei em 6 contos por causa dos tratamentos e o ordenado não chegava. Em segundo lugar sempre tive ideias de ficar com o que era dos meus pais e precisava de arranjar dinheiro para comprar aos meus irmãos a parte da herança. Em terceiro lugar foi por causa da política. Já tinha sido avisado 3 vezes e ameaçado uma vez e achei melhor ir procurar o meu destino noutro lado.
 
E quando se chega a França, depois de tantas dificuldades pelo caminho, alguma vez se pensa voltar atrás? Ou será que aquela era uma terra de futuro?
 
No primeiro dia que comecei a trabalhar pensei para mim “se isto for todos os dias assim, estou aqui estou em Portugal” porque eu estava a trabalhar com o tal alentejano, eu estava em baixo e ele no andaime de cima, eu tinha que lhe passar uns painéis de chapa com 60 cm de largo e dois metros e meio de comprimento que eram besuntados com gasóleo. Ora eu sinto-me mal com o cheiro do gasóleo e quando eu levantava a chapa 1 metro ela descia meio metro porque estava escorregadia, empeçava no peito e ficava todo sujo de gasóleo.
Foi nesse primeiro dia que disse “estou aqui estou em Portugal” e afinal só vim ao fim de 40 anos!
Olha Zé António, houve alguns que se vieram embora de França e depois tiveram de voltar para lá, por isso não me arrependo da minha escolha. Trabalhei muito, mas melhorei a vida, conheci amigos e nunca me desliguei de Riachos.
 
Afinal, é simples perceber a história de vida de um emigrante. Difícil é agarrar nas emoções e transformá-las em palavras. Aqui o riso e a amizade, ali o medo e a incerteza, também o espanto, a língua e muita coisa ainda por escrever.
E uma certeza: o salto, mais que a passagem de uma fronteira fechada, foi também um salto na consciência, na conquista da cidadania, na emancipação.

(José Tomé, depoimento recolhido em Agosto de 2014)

Actualizado em ( Quinta, 02 Outubro 2014 11:41 )  
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