o riachense

Sexta,
26 de Abril de 2024
Tamanho do Texto
  • Increase font size
  • Default font size
  • Decrease font size

Pedro Barroso

Enviar por E-mail Versão para impressão PDF

400 metros barreiras

Memórias (2)

Nas gavetas da memória descerei hoje mais fundo. 

Quando se atinge idade, alcança-se também o direito de lembrar mais longe. Já fomos a muito sítio, já vivemos muitas experiências, já tivemos muitos amigos. Já tivemos muitos modos de passar o tempo. Por isso hoje não vou falar-vos de corridas em aeroportos, nem contar episódios acontecidos em palcos ou em estadias ligadas à vida de músico. Irei ainda mais atrás.

Há muito, muito tempo - há cerca de quarenta anos e uns setenta quilos atrás - era eu um jovem desportista que gostava de Atletismo e treinava num clube ainda hoje com viva projecção, conhecido como CDUL, ou, mais precisamente – Clube Desportivo Universitário de Lisboa. 

É um clube maioritariamente de estudantes, tranquilo, que na altura se dedicava exclusivamente, tanto quanto recordo, à Esgrima, ao Atletismo, ao voleibol, ao Basquetebol e especialmente ao Rugby. Leque reduzido de modalidades mas com um capital enorme de charme e simpatia. E umas instalações muito agradáveis, frente ao Hospital de Santa Maria em Lisboa, entre amplos relvados, vários campos de râguebi, uma extensa mata e aristocrático arvoredo.

Os treinadores de Atletismo eram o Prof. João Coutinho – depois célebre comentador de Basquetebol na TV, que veio a ser meu colega muitos anos como professor, no Liceu de S. João do Estoril e infelizmente, recentemente desaparecido - e o Prof. Eduardo Cunha. 

Aos fins de tarde, a partir dos meus treze, catorze anos – uma vez descoberta uma certa queda para a velocidade pura – desenfiava-me e lá ia eu treinar, sempre que podia. Era um miúdo entroncado e com as pernas curtas, mas com jeito e ouvido para partir ao tiro e muito rápido nos primeiros cinquenta metros. Depois...ia andando para trás. Mas, mesmo assim, ainda cheguei a internacional juvenil, isto para que saibam de tal inutilidade e eu, enfim, me possa gabar de alguma coisa, em nome de uma fisicidade que perdi. Oh, se perdi. Hoje o corpo inventa-me um achaque a cada dia. Mas adiante.

O tartan ainda não existia. Corria-se em “tarterra”, como nós dizíamos. Com a curiosidade da pista de atletismo no Estádio Universitário, onde treinávamos, ser negra, o que nos tornava numa espécie de primos do carvoeiro no fim dos treinos, e nos enchia de lama preta no Inverno.

Fazer atletismo por amor era o lema. Hoje o dinheiro invadiu tudo. Mas ali eram outros tempos e outra mentalidade. Mais novo, lembro-me de alguns personagens da minha idade ou ligeiramente mais velhos que por lá apareciam, hoje conhecidos noutras áreas, incluindo ministros e o mais que se verá...

Relembraria por exemplo o velocista e barreirista, hoje seleccionador nacional, Prof Abreu Matos que era o mais baixo barreirista da história do atletismo nacional e que foi, contudo, internacional; homem rapidíssimo a valer 10.6 nos 100 metros planos. Tudo isto em “tarterra”, pois só mais tarde aparecem as primeiras pistas de tartan em Alvalade e depois no Estádio Nacional.

Outro barreirista de vulto, internacional em muitos encontros, era o Alberto Matos, um negro muito alto e magro, sempre vestido impecavelmente, dado às danças de salão e à namoriscadela. Um dandy, elegantíssimo no gesto de passar barreiras altas, sempre na sombra, pela crónica supremacia do Comura Imboá, do Benfica, que era o número um crónico de Portugal nos 110 metros barreiras. Hoje é empresário de construção civil no Algarve e, de vez em quando, lá nos vemos, em Ferragudo. Continua igual - negro, alto, dandy, elegante, simpático, ágil. Tivesse eu de tal elegância exemplo...

Mas outro barreirista aparecia de vez em quando. Era um rapaz, bom estudante de Económicas e Financeiras - que era como aquilo se chamava dantes - e que, quando podia, ia treinar. Irregular na assiduidade, sempre condicionado ao seu calendário académico. Bolsas em Inglaterra, idas ao Algarve para ver a família, exames, enfim, a irregularidade nos treinos reflectia-se no seu rendimento, claro. E tudo isso enfurecia o professor Coutinho, que via nele qualidades evidentes como atleta. 

Um dia, magro e pernalta como era, quis o professor que ele experimentasse as barreiras baixas; isto é, queria que o jovem experimentasse os 400 metros barreiras. Para isso - numa bela tarde em que eu estava presente a cumprir outro programa de treino - puseram-se as barreiras nas marcações da pista, que constavam incrustadas na pedra da corda, para não haver medições nem dúvidas. Deixou-se uma pista vaga para o desgraçado sofrer o castigo. E pronto. Vamos lá experimentar.

Correr 400 metros já é um sufoco do princípio ao fim e costuma dizer-se na gíria que é “partir a matar e chegar a morrer”... Agora... Com barreiras a obrigar a passo certo no espaço entre elas... Calcula-se o frete! Um indivíduo vai cansado, mas não pode diminuir o ritmo, nem alterar o número par de passadas, senão chega com as pernas trocadas à próxima barreira...e já não lhe dá jeito saltar!... Complicado!

O jovem esforçava-se. Mas as passadas certas entre barreiras nunca aconteciam. Nunca dava espaço. Trocava o pé de chamada, dava uma passada a mais ou a menos e tinha de parar... Mais uma tentativa, outra atrapalhação. O homem corria bem e saltava muito bem, era alto, seco, esguio e enérgico. Já o tinha visto treinar a saltar barreiras altas, mas naquele dia, a adaptação aos 400 m barreiras - disciplina altamente técnica, é certo - estava a ser difícil. O professor já brincava com ele e dizia-lhe: 

“- Então você é um economista e não sabe contar?”

Ele amuava e lá partia outra vez. Até que, ao fim da terceira ou quarta tentativa, quando, uma vez mais, desacertou o número de passadas no espaço intermédio e se esbarrou na barreira seguinte, rebentado e chateado com a experiência gritou:

“- Professor! É impossível! Eu contei bem! Já sei o que é! As barreiras que estão mal colocadas!” 

O professor riu-se:

“- Você ‘tá mas é maluco! Então não estivemos os dois a pô-las com todo o cuidado nas marcações?!”

Resposta pronta do economista-barreirista:

“- Olhe! Então isto está tudo mal marcado e mal medido!”

Risota geral no treino. Até eu, que era mais puto, achei piada à desculpa esfarrapada. A culpa era da pista. Ele é que estava certo, de certeza.

O promissor atleta, de seu estranho nome Aníbal Cavaco, já nessa altura, nunca se enganava e raramente tinha dúvidas.

 

Actualizado em ( Quinta, 13 Novembro 2014 11:18 )  
{highslide type="img" height="200" width="300" event="click" class="" captionText="" positions="top, left" display="show" src="http://www.oriachense.pt/images/capa/capa801.jpg"}Click here {/highslide}

Opinião

 

António Mário Lopes dos Santos

Agarrem-me, senão concorro!

 

João Triguinho Lopes

Uma história de Natal

 

Raquel Carrilho

Trumpalhada Total

 

António Mário Lopes dos Santos

Orçamentos, coisas para político ver?
Faixa publicitária
Faixa publicitária
Faixa publicitária
Faixa publicitária