400 metros barreiras
Memórias (2)
Nas gavetas da memória descerei hoje mais fundo.
Quando se atinge idade, alcança-se também o direito de lembrar mais longe. Já fomos a muito sítio, já vivemos muitas experiências, já tivemos muitos amigos. Já tivemos muitos modos de passar o tempo. Por isso hoje não vou falar-vos de corridas em aeroportos, nem contar episódios acontecidos em palcos ou em estadias ligadas à vida de músico. Irei ainda mais atrás.
Há muito, muito tempo - há cerca de quarenta anos e uns setenta quilos atrás - era eu um jovem desportista que gostava de Atletismo e treinava num clube ainda hoje com viva projecção, conhecido como CDUL, ou, mais precisamente – Clube Desportivo Universitário de Lisboa.
É um clube maioritariamente de estudantes, tranquilo, que na altura se dedicava exclusivamente, tanto quanto recordo, à Esgrima, ao Atletismo, ao voleibol, ao Basquetebol e especialmente ao Rugby. Leque reduzido de modalidades mas com um capital enorme de charme e simpatia. E umas instalações muito agradáveis, frente ao Hospital de Santa Maria em Lisboa, entre amplos relvados, vários campos de râguebi, uma extensa mata e aristocrático arvoredo.
Os treinadores de Atletismo eram o Prof. João Coutinho – depois célebre comentador de Basquetebol na TV, que veio a ser meu colega muitos anos como professor, no Liceu de S. João do Estoril e infelizmente, recentemente desaparecido - e o Prof. Eduardo Cunha.
Aos fins de tarde, a partir dos meus treze, catorze anos – uma vez descoberta uma certa queda para a velocidade pura – desenfiava-me e lá ia eu treinar, sempre que podia. Era um miúdo entroncado e com as pernas curtas, mas com jeito e ouvido para partir ao tiro e muito rápido nos primeiros cinquenta metros. Depois...ia andando para trás. Mas, mesmo assim, ainda cheguei a internacional juvenil, isto para que saibam de tal inutilidade e eu, enfim, me possa gabar de alguma coisa, em nome de uma fisicidade que perdi. Oh, se perdi. Hoje o corpo inventa-me um achaque a cada dia. Mas adiante.
O tartan ainda não existia. Corria-se em “tarterra”, como nós dizíamos. Com a curiosidade da pista de atletismo no Estádio Universitário, onde treinávamos, ser negra, o que nos tornava numa espécie de primos do carvoeiro no fim dos treinos, e nos enchia de lama preta no Inverno.
Fazer atletismo por amor era o lema. Hoje o dinheiro invadiu tudo. Mas ali eram outros tempos e outra mentalidade. Mais novo, lembro-me de alguns personagens da minha idade ou ligeiramente mais velhos que por lá apareciam, hoje conhecidos noutras áreas, incluindo ministros e o mais que se verá...
Relembraria por exemplo o velocista e barreirista, hoje seleccionador nacional, Prof Abreu Matos que era o mais baixo barreirista da história do atletismo nacional e que foi, contudo, internacional; homem rapidíssimo a valer 10.6 nos 100 metros planos. Tudo isto em “tarterra”, pois só mais tarde aparecem as primeiras pistas de tartan em Alvalade e depois no Estádio Nacional.
Outro barreirista de vulto, internacional em muitos encontros, era o Alberto Matos, um negro muito alto e magro, sempre vestido impecavelmente, dado às danças de salão e à namoriscadela. Um dandy, elegantíssimo no gesto de passar barreiras altas, sempre na sombra, pela crónica supremacia do Comura Imboá, do Benfica, que era o número um crónico de Portugal nos 110 metros barreiras. Hoje é empresário de construção civil no Algarve e, de vez em quando, lá nos vemos, em Ferragudo. Continua igual - negro, alto, dandy, elegante, simpático, ágil. Tivesse eu de tal elegância exemplo...
Mas outro barreirista aparecia de vez em quando. Era um rapaz, bom estudante de Económicas e Financeiras - que era como aquilo se chamava dantes - e que, quando podia, ia treinar. Irregular na assiduidade, sempre condicionado ao seu calendário académico. Bolsas em Inglaterra, idas ao Algarve para ver a família, exames, enfim, a irregularidade nos treinos reflectia-se no seu rendimento, claro. E tudo isso enfurecia o professor Coutinho, que via nele qualidades evidentes como atleta.
Um dia, magro e pernalta como era, quis o professor que ele experimentasse as barreiras baixas; isto é, queria que o jovem experimentasse os 400 metros barreiras. Para isso - numa bela tarde em que eu estava presente a cumprir outro programa de treino - puseram-se as barreiras nas marcações da pista, que constavam incrustadas na pedra da corda, para não haver medições nem dúvidas. Deixou-se uma pista vaga para o desgraçado sofrer o castigo. E pronto. Vamos lá experimentar.
Correr 400 metros já é um sufoco do princípio ao fim e costuma dizer-se na gíria que é “partir a matar e chegar a morrer”... Agora... Com barreiras a obrigar a passo certo no espaço entre elas... Calcula-se o frete! Um indivíduo vai cansado, mas não pode diminuir o ritmo, nem alterar o número par de passadas, senão chega com as pernas trocadas à próxima barreira...e já não lhe dá jeito saltar!... Complicado!
O jovem esforçava-se. Mas as passadas certas entre barreiras nunca aconteciam. Nunca dava espaço. Trocava o pé de chamada, dava uma passada a mais ou a menos e tinha de parar... Mais uma tentativa, outra atrapalhação. O homem corria bem e saltava muito bem, era alto, seco, esguio e enérgico. Já o tinha visto treinar a saltar barreiras altas, mas naquele dia, a adaptação aos 400 m barreiras - disciplina altamente técnica, é certo - estava a ser difícil. O professor já brincava com ele e dizia-lhe:
“- Então você é um economista e não sabe contar?”
Ele amuava e lá partia outra vez. Até que, ao fim da terceira ou quarta tentativa, quando, uma vez mais, desacertou o número de passadas no espaço intermédio e se esbarrou na barreira seguinte, rebentado e chateado com a experiência gritou:
“- Professor! É impossível! Eu contei bem! Já sei o que é! As barreiras que estão mal colocadas!”
O professor riu-se:
“- Você ‘tá mas é maluco! Então não estivemos os dois a pô-las com todo o cuidado nas marcações?!”
Resposta pronta do economista-barreirista:
“- Olhe! Então isto está tudo mal marcado e mal medido!”
Risota geral no treino. Até eu, que era mais puto, achei piada à desculpa esfarrapada. A culpa era da pista. Ele é que estava certo, de certeza.
O promissor atleta, de seu estranho nome Aníbal Cavaco, já nessa altura, nunca se enganava e raramente tinha dúvidas.