o riachense

Sbado,
12 de Outubro de 2024
Tamanho do Texto
  • Increase font size
  • Default font size
  • Decrease font size

Pedro Barroso

Enviar por E-mail Versão para impressão PDF

O vestido a secar na corda

Memórias (3)

Meu pai fora estudar para Lisboa. Novidade pretensiosa. 

Muita gente da terra criticou meus avós por tal bizarra escolha. Pôr um filho a estudar em vez de aprender ofício de jeito, ou cavar a terra! Mas minha avó. D. Emília Pedro Barroso, fora menina de alguns estudos e saberes, numa educação bem acima do costume, para uma jovem na sua época.

Não lhe servira de muito, é certo, mas lá entendeu que seu filho varão haveria de estudar.

Quando urgia algum livro mais caro, matava-se uma galinha gorda, vendia-se um galo, cortava-se um choupo da Valada, alguma coisa se providenciaria. Mas o rapaz havia de estudar. Estranho entendimento, rasgando o futuro para lá dos horizontes de uma aldeia antiga, de cingeleiros e gente de trabalho sol a sol.

Era uma mulher diferente, minha avó. Dela recebi um dia, quando terminei a licenciatura, um livro de sermões setecentista - imagine-se! - guardada relíquia de família, dois séculos à espera do destinatário certo e do momento adequado. Ainda me lembro bem: - alma subida, pose parada, o livro na mão, os olhos húmidos, atentos nos meus. Obviamente, fiquei perplexo, a olhar para tão insuspeitada prenda, vinda de uma mulher de olhos claros, um bom palmo mais alta que o marido, porte senhoril, olhar sempre aquilino e perscrutante.

Tudo isso invulgar, ao tempo. Tanto quanto compreendi, foi talvez forçada pelos dotes e desdotes da sorte a levar uma vida de outro recato e singeleza. Dela guardo dois apelidos: Pedro e Barroso. É verdade: – ambos apelidos. Mas adiante.

Para facilitar as coisas, meu pai, António Pedro, ficaria em casa de gente conhecida e ainda vagamente familiar, ali para a Lapa. (Hoje é um bairro fino, dos mais caros e in de Lisboa. Mas naquele tempo, não se sabia que tal coisa pudesse vir a acontecer. Não era, portanto, o caso destes primos, gente austera e de trabalho.) Ao que parece, tinham uma mercearia. E o meu pai lá ficava, recolhido com os marçanos, numas esteiras de sacas, em ambiente seguramente de pouco conforto e duvidosa limpeza. Estudar …assim impunha.

Na ideia trazia uma menina bonita e elegante, morena e de cabelos negros. Com efeito, tal musa visitava nas férias a sua tia Maria, a qual vivia em Riachos. Irmã de seu pai - meu avô Paulo. E o tio, Manuel; e sua prima, essa de seu singelo e estranho nome Liberdade.

Catrapiscanço de jovem ambicioso, claro. Menina da cidade, outra gente, outros costumes, ela ia lá querer saber dele! Mas enfim, tentaria. Que raios, não era um maltrapilho qualquer. Mais um par de anos e iria sair professor!

Bom. De tal paixão apenas sabia o nome por que ouvira a prima Liberdade, um dia, a chamá-la para jantar: - Fernandinha…! E morar ela para os lados de S. Bento. Não era longe donde estava, havia de descobrir.

E aos domingos, - após ajudar nas limpezas com que retribuía a hospedagem - à tarde, em vez de descansar de tão alongado percurso diário da Lapa para Benfica, - onde se situava a Escola do Magistério - …não senhor. Descia a Calçada da Estrela e calcorreava todo o que lhe cheirasse a Fernandinha. E procurava, coitado, bem procurava. E Lisboa tão grande, caramba.

Depois, no fim - olha! - trepar tudo aquilo outra vez, até a Lapa! Houvesse pernas.

Até que um belo dia, afortunado, por entre a roupa colorida a secar - que fazia então de Lisboa um festival de cor nos velhos bairros - foi por um vestido posto a secar, pendurado na sacada de uma janela, que o seu coração deu um baque. Já tinha visto a sua paixão com ele; no Largo, em Riachos! Era portanto, ali.

Passou a postar sentinela frente ao 284 da rua de Poiais de S Bento. Todos os poucos tempos livres, ei-lo ali caído; até que, um dia, ela saiu do prédio e, para seu grande espanto, ele lhe disse que era de Riachos e perguntou se podiam conversar. Claro que especulo, mas acho que era assim que se dizia nessa altura: conversar

Seguiram-se semanas, meses de silêncio. Até que, um dia, já farta, minha mãe lhe impôs como condição mínima que cortasse aquele bigodinho ridículo e aparecesse escanhoado. Ora bem. Aí… talvez se dignasse falar com ele!

Escusado será dizer que no domingo seguinte, meu pai apareceu limpinho e barbeado de feição.

Memórias hoje, portanto, de um tempo antes de mim. De tanto as ouvir contar, aqui deixo hoje tão íntimo testemunho.

Realmente! As coisas que um vestido posto a secar nas velhas janelas de Lisboa pode fazer.

 

Nunca se sabe se eu estaria aqui, se tal acaso nunca tivesse acontecido.

 

Actualizado em ( Terça, 27 Janeiro 2015 23:24 )  
{highslide type="img" height="200" width="300" event="click" class="" captionText="" positions="top, left" display="show" src="http://www.oriachense.pt/images/capa/capa801.jpg"}Click here {/highslide}

Opinião

 

António Mário Lopes dos Santos

Agarrem-me, senão concorro!

 

João Triguinho Lopes

Uma história de Natal

 

Raquel Carrilho

Trumpalhada Total

 

António Mário Lopes dos Santos

Orçamentos, coisas para político ver?
Faixa publicitária
Faixa publicitária
Faixa publicitária
Faixa publicitária