o riachense

Tera,
23 de Abril de 2024
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Una furtiva lacrima… sem Donizetti

A velha escola morreu.
A incúria dos homens, os orçamentos sempre reduzidos, a burocracia galopante, a falta de dinheiro e sensibilidade atiraram este edifício quase centenário e histórico da 1ª República para o chão. Ao que parece, agora, já sem outra solução, assim teria de ser.
Por aí ficarão a morar, num qualquer cemitério de entulhos regional, as velhas madeiras onde escrevi o nome, o corrimão onde me agarrei, talvez o quadro de ardósia onde escrevi as primeiras letras. Não sei.
Meu pai era lá professor quando ali fui feito, num quarto que já não sei e que seguiu com os escombros; desapareceu. Fruto de amores com minha mãe, menina da cidade para Riachos importada, por amor de um casamento que ali residiu, ali fizeram este filho. Assim calhou, pelas minhas contas.
Sim. Nessa altura os senhores professores, tal como os vigários, tinham direito a casa anexa para o exercício dos seus sacerdócios.
Lembro a D.ª Cármen Padilha, vizinha do lado e que lá foi ficando uma vida inteira, muito depois disso.
Havia uma escada interior que descia para o pátio onde brincava, ainda muito criança, mas que ainda lembro. Havia capoeiras onde eu admirava as galinhas e um pessegueiro esquisito, quase chorão, pingado de ramagens, onde me punha muito caladinho, quando me apetecia brincar mais tempo às escondidas e ignorar a chamada para o lanche.
Havia também, de um dos lados, um tanque de rega redondo, onde as elites convidadas se refrescavam, prenunciando uma espécie de piscina - coisas que ainda demorariam dezenas de anos para se tornarem vulgares.
Havia o sr. Cerejo pai, homem de trabalho e de poucas falas, sempre de camisa de ganga, e que todas as tardes ia fazer a horta e passava com a enxada, cavando aqui, ajeitando acolá.
Havia a Maria Verdade – que nome tão bonito… – que foi minha ama de leite, empregada da Escola, amiga e confidente, aturando os cachopos.
Os cachopos éramos nós. E ali fizemos bolos de pedra de tufa, e brincamos nas hortas, e apanhamos fruta, e tomamos banho, e corremos à apanhada, e fizemos bravas touradas e noites de comédias e variedades. Eu, o Có, o Manecas, o Toino, que era o mais velho, e o Carlos, a Zita, a Mila, a Rosa, tantos outros. A Rosa Maia vigiava, sentada da porta, as brincadeiras dos cachopos; e no Verão vinha gente das vizinhanças para assistir, ali no largo em frente, onde a rua alargava um pouco e nós pintávamos a manta em seroadas de maior luar.
Mais velhinhas, muito meninas e bem comportadas, minha irmã e a saudosa Manuela, bem como a Belinha, a Nazinha, a Alice e a São – isto assim que me lembre…- naqueles degraus sonharam, quem sabe, o seus príncipes encantados do futuro e mais tarde os primeiros namoros; e se calhar, talvez também ali tivesse acontecido o seu primeiro beijo. Coisas de princesas, contos de encantar.
A escola velha, descobriu-se depois que… tinha um nome aristocrático. Nacional. Era o edifício histórico Adães Bermudes, afinal uma raridade. Sinal de que Riachos houvera sido escolhido para posicionamento e função piloto, para os homens responsáveis pela Instrução Pública, logo na Primeira República.
Para nós era a Escola velha. Sempre foi velha, já sabíamos. A sua morte anunciada foi-se adiando.
Tempo houve em que poderia ter sido recuperada a tempo. Assim, já não havendo outra saída, tentou salvar-se uns breves pormenores e a velha cantaria de topo. A tal em que a palavra escola, ostentava uma deliciosa gralha pois tinha a letra s escavada ao contrário, por canteiro perfeitíssimo mas, seguramente…analfabeto.

Ao fim do dia concluiu-se o abate. A velha escola ficou escombro.
Fica a promessa rigorosa de um edifício igual, a erguer no mesmo lugar. Entretanto, a minha memória ficara viúva e órfã desses momentos meninos de mim mesmo.
Fiquei ali, absorto, a pensar na brevidade da vida e na rapidez da mudança.
E houve quem presenciasse, irreverente, uma furtiva lágrima.
Una furtiva lacrima. Ária triste de dor.
E desta vez Gaetano Donizetti não tinha culpa.
Só eu e o tempo fomos responsáveis por essa tristeza. Só nós a podíamos perceber.

Pedro Barroso

Actualizado em ( Quinta, 23 Dezembro 2010 10:26 )  
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