o riachense

Quinta,
25 de Abril de 2024
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José Manuel Martins

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Um Natal como outro não tive

Afeganistão.
Onde todos os dias se mata por nada e por tudo, e onde se morre por tudo e por nada. Onde os que vivem, apenas sobrevivem, sem parecer ralar-se com coisa alguma. Onde o tempo não escorre, simplesmente acontece, para uma estranha gente, capaz da mais calorosa hospitalidade, para, logo a seguir, sem qualquer mais, ser capaz da mais atroz das matanças; onde o ranho das crianças da rua lhes serve de alimento; onde os homens passam horas de cócoras sem nada fazer; onde às mulheres não lhes é permitido que destapem aos olhos alheios um pêlo só que seja de seu.
As vontades dos homens e as exigências das funções quiseram colocar sobre os meus ombros a responsabilidade de comandar um punhado de homens da Forca Aérea neste estranho e ancestral, mas ferido e problemático país, encravado no coração longínquo da Ásia, na tentativa de, com as pequenas migalhas de competências que arrastamos connosco, o ajudar a ultrapassar dificuldades.
Estou aqui vai para dois meses e meio...
E, juntamente com “os meus homens”, por aqui irei permanecer mais alguns meses, tentando perceber como se pode ajudar quem nos lança um olhar desconfiado e descrente desse nosso despojo ou, o que é pior, encolhe os ombros com inquietante indiferença. Connosco, neste “quartel”, estão outros militares e civis de quase quarenta países, do Canadá à Mongólia, da Austrália à Suécia, o mundo cruzado de lés-a-lés, animados da mesma vontade, tentando dar as mãos a este povo que parece não ligar importância nenhuma a essa missão. Eis o estigma de tantos séculos – talvez seja isso!; que sei eu, afinal, dessas coisas?!... - em que os estrangeiros os enganaram e os tentaram marcar com o ferrete do jugo opressor. O estigma de gente que – pois! – nasceu para resistir e cresceu a não confiar no estranho vindo do lado Ocidente, que cruza as suas fronteiras.
Por isso, todos os que aqui estamos, tentamos vislumbrar, a cada infindável dia que passa, uma razão bem funda que justifique ter deixado para trás e tão longe a nossa querida família e os nossos queridos amigos, em nome das alegadas necessidades deste povo, eterna e irremediavelmente dividido, mas cujas famílias são, precisamente, o seu maior tesouro, a quem jamais abandonariam! Estranha ironia esta, bizarra contradição em que as vielas do Destino me vêem a deambular, e logo, precisamente na época do ano em que, nós, os ocidentais, mais invocamos a Festa da Família, a enorme alegria que é estarmos juntos dela, a fantástica dádiva divina de com ela podermos partilhar o que temos e não temos, à luz do Presépio onde, acreditamos, fazemos renascer o Menino...
Ora eu, este ano, estando aqui, não posso viver esse espírito! Nem os outros todos – à volta de quatro milhares! - do Mundo inteiro que estão aqui comigo, neste campo militar aposto às portas de Kabul, numa terra árida e sedenta, que há muitos meses seguidos não “bebe” uma pinga de água, cercado por uma cadeia de inóspitas montanhas, qual muralha inexpugnável, e envolto num permanente véu de poeira fina e irritante que se nos entranha por todos os poros, entope os pulmões e que, se a ventania se levanta, torna insuportável qualquer esforço para andar na rua; enfim, num deserto onde só o mais recôndito dos segredos da natureza humana pode explicar que aqui haja gente a viver. Por isso, eu julgava que o meu Natal, aqui, neste ano, iria ser só eu e Jesus-Menino, os dois juntos no meu quarto, Ele a contar-me histórias antigas de Bem-querer e eu a escutá-Lo atentamente, como se fora eu o menino, recordando as Suas lições do Querer-bem.
Mas não!.. De facto os desígnios Dele são inatingíveis e, no mais inesperado dos momentos, há sempre aquele Seu sinal sublime, aquela Sua forma muito peculiar de dizer: “Eu estou sempre convosco”!...
Senti que aconteceu isso anteontem, cinco dias antes do Seu renascer!
Alguém me bateu à porta do quarto e disse: “Charlie” (puro código, começa com “C” de “Chefe”, é assim que me chamam, às vezes, “os meus homens” - acredito que por carinho, tão somente!) “vai haver uma Cantata de Natal aqui no campo, amanhã ao cair da noite. Todos os Contingentes estão a ser chamados a cantar uma Canção de Natal própria do seu país. Temos que arranjar qualquer coisa!” Permaneci afastado do repto; mas lá veio a insistência de um outro, componente da outra Força portuguesa que, com a minha, compartilha o mesmo alojamento: “Vá lá, TêCê” (outra forma como me tratam, um pouco menos informal, se quiserem, são as iniciais do Posto que detenho...), “tem que nos ajudar a fazer qualquer coisa! Arranje aí uma canção e venha ensaiar-nos!”. Olhei, pensativo, mas já nada ausente. E, pese embora contra-feito, aceitei. “OK, já que tem que ser, tem muita força. Honremos a nossa Pátria e a nossa Gente!”. Escolhi o fado (pois que outra canção nacional poderia ser!) “É Natal”, de Fernando Farinha (alguns deles, os mais abastados em juventude, nem sabiam de quem se tratava!...). Ensaiámos todos, as duas Forças portuguesas juntas, um quarteirão de homens no mesmo corredor, sob a batuta improvisada dos meus dedos, obedientes ao meu parco saber destas lides. E, no dia seguinte, ao cair da noite, comparecemos no local da concentração... Lá estava todo (ou quase...) o efectivo internacional do “compound” militar do aeroporto da capital afegã! Prontos e alinhados para comungar um momento de Natal inusitado, recorrendo às musicas próprias de cada nacionalidade e pensando preces para que, neste interim de Paz e Concórdia não se abatesse sobre nós mais uma das ameaças mortais que constituem o nosso dia-a-dia! Chegada a nossa vez, cantámos aquele fado-oração que ensaiáramos à pressa! Duas dúzias de vozes masculinas mal-amanhadas em busca da afinação possível e a tentar o uníssono improvável. Mas…e não é que saiu tão bem?!...
E todos os outros, das outras nações, cantaram sob a luz das estrelas, (tendo eu como certo que uma delas é, ai isso é!, a Estrela que iluminou a gruta de Belém!).... E não é que nos sentimos tão bem, ali?! Húngaros, romenos e alemães; portugueses, espanhóis e italianos; franceses, belgas e canadianos; suecos, americanos e dinamarqueses; búlgaros, checos e lituanos; mongóis, turcos e jordanos. Eu sei lá quantos mais… Só sei que, tendo cada um cantado nas suas línguas, todos ali nos entendemos. Isto faz-nos lembrar alguma coisa?!...
Saí dali com a alma cheia! Afinal, o meu Natal não vai ser assim tão triste! O Menino, que me sabe tão longe da Família e Amigos, tratou de arranjar-me outra “Família” enorme e outros “Amigos” para que me sentisse aconchegado, tanto quanto possível. Desta vez, sim, a Sua prenda foi bem real! É por isso – e não só! – que eu acredito Nele e o recebo todos os Natais com a mesma Alegria, Crer e Confiança!
E é por isso que eu confio que os meus conterrâneos – que mesmo estando longe nunca esqueço! – tenham, com Ele, vivido estas Festas de Natal e Ano Novo, com Paz e Bem, ou, como se diz aqui, “Shalam-Aleikhum”!

 

Actualizado em ( Quarta, 12 Janeiro 2011 17:16 )  
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