o riachense

Tera,
23 de Abril de 2024
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Tombuctu


Estou em Tombuctu. Cidade história. Passado presente. Presente passado. Cidade dos tuaregues, hoje por hoje dos turistas. Estes locais prenhes de história e de estórias depois da descoberta dos turistas passam a dispor daqueles pequenos mimos que (não) dispensamos. Temos bons hotéis. Casas de artesanato. Guias para nos mostrar todos os cantos da cidade.
Tudo tem o seu reverso. As crianças crescem a ver turistas todos os dias e todos os dias os vêm a pagar por tudo e por nada, quando se vê um branco por estes lados é sinónimo de dinheiro a rebentar por todos os lados, todos querem o seu quinhão. Como estou só, e pareço árabe, safo-me.
Tombuctu tem no entanto coisas únicas. As casas são feitas com um tipo de tijolo que só há aqui. As portas são enormes, de madeira maciça, com grandes batentes metálicos e intrincados motivos também metálicos, que tornam cada porta numa peça única. Como apenas uma cidade antiga e importante pode ter, Tombuctu tem muitas bibliotecas. Antigas bibliotecas, que estão ao cuidado da mesma família há séculos. Aqui também há muitos historiadores. Centros culturais. Mesquitas construídas em terra com mais de sete séculos. Um mercado de artesãos cuidado e com artigos (ainda) genuínos.
O deserto está aqui à porta, melhor, adentro mesmo da cidade, a lembrar aos homens, que se esta é a capital do deserto, o deserto reserva-se o direito de reclamar o que é seu.
Quem possa pensar vir até aqui deve ter em conta, Tombuctu é longe de quase tudo. Os acessos (ainda) são maus. Podem sempre vir de avião, mas aí o choque será sempre diferente. Quem venha da Europa e aterre em Tombuctu, não terá feito a adaptação que quase mil quilómetros necessariamente fazem. Não terá visto a mudança da paisagem. As povoações que lutam por existir num ambiente agreste. As pessoas que se dedicam à sobrevivência diária, umas com os seus rebanhos, outras com a pesca, outras cultivando os campos. Atravessar tudo isso como fizemos ontem, quinhentos quilómetros em dez horas sem parar, mostra-nos uma Tombuctu com outra luz, com outro encanto. Beber aqui o chá com os tuaregues, não é somente beber o chá, é providenciar aos sentidos algo amargo, doce, quente, aromático, num ritual que nos faz sentir pertença e não sermos um objecto estranho que caiu do céu.
Em Janeiro próximo realiza-se aqui o festival do deserto. Um festival de música. Com músicos de todo o mundo. Até recentemente este festival realizava-se a cerca de setenta quilómetros de Tombuctu, deserto adentro. Numa zona de difícil acesso, sem água, comida ou sombra, curiosamente, talvez devido às circunstâncias particulares de segurança que vivemos, o festival realiza-se agora mesmo às portas da cidade e são os próprios habitantes que realçam o gosto perdido de antanho. Passou a ser um festival (quase) como os outros. Pode-se estar num confortável hotel, ir ao festival e regressar para um duche e uma noite reconfortante, para voltar no dia seguinte.
Tombuctu é a cidade dos 333 santos. Cidade que há já muitos séculos prega o islão. A primeira universidade subsaariana existiu aqui desde o século treze. No quarto do hotel onde estou, numa mesa-de-cabeceira tenho o sagrado Corão, em inglês e Árabe, na outra tenho a sagrada Bíblia, em Francês.
Há aqui bares com música ocidental e bebidas alcoólicas.
Tombuctu perdeu a aura mítica, com que atravessou muitos séculos. A sua fama de riquezas atraiu tantos a partir à sua descoberta e tão poucos viram recompensada a sua empresa… Talvez o seu futuro esteja no seu isolamento, mas também nos seus acessos. Nos seus tesouros, mas também nos seus turistas. Na sua história certamente, mas também na sua capacidade de inovar. Nos seus habitantes, mas também nos estrangeiros que aqui queiram investir, como o novo hotel Líbio, prestes a abrir, que para além do aspecto magnífico, tem acesso a uma praia banhada por água trazida por um canal desde o vizinho rio Níger, quinze quilómetros a sul da cidade...
Com todas as suas contradições, se vale a pena a viajem? Certamente.
Para terminar a estada na cidade mítica uma deslocação ao porto de Korioumé, ancoradouro que serve Tombuctu, o rio nesta zona apresenta uma largura tal que a margem sul apenas é adivinhada. O “BAC” transporta um camião para a outra banda. É a partir de Korioumé que podemos partir para uma visita aos hipopótamos. Terá que ficar para outro dia.
De volta a Tombuctu, o comandante Sangaré sugere uma visita ao “Institut des Hautes Études et de Recherches Islamiques  Ahmed Baba de Tombouctou”. Entrámos, chamam-nos a atenção para o adiantado da hora. Somos recebidos pelo director o Dr. Djibril Doucoure, as apresentações da praxe, sem grande entusiasmo. O Dr. Doucoure faz menção que pertence aos descendentes do Império do Ghana, anterior ao do Mali e ao próprio Islão, por estas paragens. Ao escutar isso atirei-lhe, “então é Sarakolé, primeiro sorriso, é Soninké!, Largo sorriso, “Ha Kembiré Waga”, um salto na cadeira e um discurso em soninké, ao qual só respondia com acenos de cabeça e sorrisos. O Dr. Doucoure comenta para o comandante, “Isto é fantástico, ele (eu) conhece os soninké e a própria língua”, claro que não me desmanchei e a partir deste momento as horas passaram para segundo plano. Quando referi que era português, disse-me logo que os portugueses foram os primeiros europeus a chegar ao império do Mali e agora estavam de volta. Tombuctu necessita desta estrada como de pão para a boca e nós somos muito bem-vindos. Boa.
Bouya Haidara, chefe bibliotecário, levou-nos então a ver os famosos manuscritos. O primeiro que me chamou a atenção foi um de Avicena, Tratado de Medicina em Verso, o mais famoso filósofo e médico do seu tempo séc. XI, há mil anos portanto, este é também o mais antigo da biblioteca, que conta com mais de trinta mil, já catalogados, não estando o total apurado pois muitos há ainda para catalogar.
Contou-nos de modo resumido a história de Tombuctu, mostrou-nos o acervo da biblioteca e a todas as questões respondeu sempre com inusitado prazer.
Fomos ainda ver a terceira mesquita histórica, já tinha visto a Dingarey ber, construída em 1325, pelo imperador Kankou Moussa, após o regresso da peregrinação a Meca, a Sankoré, do Séc XV, que tem como curiosidade ter um diâmetro igual ao da Kaaba em Meca e que ficou famosa por ter sido o santuário dos intelectuais e a casa mãe da universidade de Tombuctu, fomos então ver a Sidi Yéhia, de 1400, onde estão os restos mortais de Sidi Yéhia Al-Andalusi, famoso arquitecto Al-andaluz, responsável por boa parte da cidade velha.
Tanta coisa vista em tão pouco tempo. Tanta coisa por descobrir.


(19 de Novembro de 2010)

Actualizado em ( Quinta, 24 Fevereiro 2011 14:20 )  
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