o riachense

Sexta,
26 de Abril de 2024
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  Táchákhor!


Era chegado o dia de descer ao país real e profundo, em direcção às remotas paragens do vale de Musahi.
O pessoal tinha vindo a planear o deslocamento para esta Acção Humanitária com muito cuidado e isso implicava enfrentar um percurso de cerca de trinta quilómetros para sul de Kabul, tomando a Índigo, que é uma das pouquíssimas estradas asfaltadas do país, ligando esta estranha e perturbante metrópole ao sul do país. Eram cerca de oito e meia da manhã e, logo que saíssemos da cidade, sabíamos que ainda tínhamos mais de hora e meia para percorrer os cerca de dez quilómetros finais, por um caminho de cabras, pedregoso, esburacado e lamacento, até chegar ao nosso destino. E o combinado era lá chegarmos a meio da manhã. Para isso teríamos que atravessar a capital afegã de ponta a ponta, o que era preocupante, não só pelo perigo constante, como também pela demora que isso iria implicar.
Kabul é uma cidade patética!
Já de si desairosa, desarrumada e de coração desfeito, torna-se, nesta altura do ano, num lamaçal imundo, irritante, pegajoso, podre e malcheiroso. Com a poluição a ultrapassar todos os limites do admissível, com um trânsito mais caótico que no Cairo ou em Jakarta, constantemente ameaçada de atentados, explosões e ataques, e sobrelotada de um povo desenraízado, desempregado e desconfiado da própria sombra, é uma cidade surreal, sem pés nem cabeça. Dela só apetece fazer como faz o botão à sua casa: mal entra, já está a sair!... Talvez – também – por tudo isso, a coluna militar atravessou-a tão depressa quanto possível e saiu dela em marcha acelerada. Já passava das nove da manhã e a nossa missão levava-nos até outras gentes, que já nos esperavam, pelo que o tempo urgia.
O nosso destino era Khalé Dashtak, uma aldeia isolada lá nos confins do vale, incrustada nos contrafortes onde escorre a neve desfeita, constituída por casebres de adobe, dispersos e lúgubres, onde vivem, por junto, cerca de duzentas famílias. Curiosamente “dashtak”, na língua Dari significa “clínica”, sabe-se lá porquê, já que, aos olhos de um ocidental, aquele conjunto de edificações perdidas, feias e tristes será tudo menos isso!... O objectivo, urgente, era nobre: entregar àquela pobre e desamparada gente todos os haveres que, vindos de Portugal, tinham chegado a Kabul para oferecer aos mais necessitados. Três toneladas de roupa, material escolar básico e brinquedos, o que deu para quase cento e noventa conjuntos individuais, ou seja, praticamente todas as famílias da aldeia seriam contempladas com esta dádiva, surgida, de repente, das portas do deserto. Mais de metade deste material veio da nossa terra e da nossa grande gente de Riachos, recolhido através do serviço paroquial da Caritas. Por isso eu estava lá, convidado pelos organizadores, o Exército afegão e os mentores do Exército português, ocupando um dos lugares das viaturas blindadas conhecidas por “humvis”, para que pudesse testemunhar para a nossa querida terra que a este povo materialmente miserável era agora entregue o que o povo português, também ele assaz sofredor nesta altura, tão generosamente ali havia feito chegar.  
Nós sabíamos que íamos para um dos territórios mais perigosos desta zona do país. Conhecido como um dos ditos “santuários dos Taliban” mais próximos de Kabul e onde eles têm mais implantação. Por isso todo o cuidado era pouco e íamos preparados para qualquer eventual ataque “insurgente”! Por outro lado, é dos livros que, no Inverno, o Afeganistão pode ser dos territórios mais inóspitos do planeta. Ora, o vale de Musahi, um planalto a perder de vista, situado na província de Lowgar, implantado a cerca de dois mil metros de altitude, circunscrito pela coroa montanhosa do Shakhay Gharib, cujo cume se empertiga até mil e tal metros mais acima, é, de certeza absoluta, um dos pontos deste país desassossegado que faz jus à sua fama de desolação. Nada, mas mesmo nada, ali há que tenha vida natural, selvagem! Só calhaus, calhaus e mais calhaus e, por estes dias, neve, muita neve… A ironia disto é que esta paisagem estéril é, também, em contradição, qualquer coisa de lindo, pelos efeitos que a luz do sol provoca sobre o manto branco que cobre as nuas e desertas, mas belas e imponentes, montanhas.
Percorrido aos solavancos o caminho até à entrada do vale (as minhas vértebras já chiavam, doloridas) eis que se nos depara um cenário indescritível, simultaneamente belo e desolador, pacífico e perturbador: quilómetros e quilómetros de nada, nem de coisa nenhuma, ao nosso redor, com a distância a perder-se de vista até chocar, ao longe, com estrondo, nas encostas brancas da cadeia montanhosa. Um silêncio inquietante, efectivamente digno de um santuário, passe o exagero e a heresia! Havia naquele imenso planalto uma sensação de que éramos espiados que se nos entranhava no ser, uma impressão terrível de que, por toda a coroa das montanhas, nos olhava um enorme “olho de sauron”. De barulho, só de tempos a tempos, o zurrar de uns jericos, que vinha de mais além… Curiosamente, a frente da coluna guiou-nos na direcção desses zurros. Era, pelos vistos, lá que se encontravam as gentes que nos esperavam.
E era! Lá ao fundo, a meio de um terreno sem fronteiras, sentados sobre a neve, estavam todos os homens, rapazes e meninos das aldeias, a escutar o Chefe da tribo, que lhes explicava o que se iria passar. Chegámos, apeámo-nos e juntámo-nos ao grande grupo. Assaltaram-nos centenas de olhares inquisidores e penetrantes, mas, curiosamente, não notámos em nenhum qualquer sinal de hostilidade ou animosidade. Era bom sinal!... Não vou descrever aqui a pobreza do quadro em que eu me vi ali envolvido; a miserabilidade material e o aspecto de “abandonados pela sorte” que aqueles homens deixavam transparecer! Não vou! Vou deixar que, com este rotundo “não vou”, cada leitor o imagine!... O que vou é relatar um episódio breve em que, sem querer, me vi protagonista e que me envolveu de uma compaixão tal que o meu coração saltita ao recordar!!!...
Eu sabia (tanta foi a formação recebida nessa matéria) que a aceitação dos estrangeiros por parte dos adultos afegãos mora, e cresce, na relação directa do afecto e carinho genuínos que esses estrangeiros demonstrarem pelas suas crianças. E eles sabem bem distinguir o genuíno do postiço, se sabem! Ora, nesse ponto, eu estava no meu terreno favorito, quem me conhece bem, sabe que eu adoro crianças! E estavam ali dezenas delas, maltrapilhas e curiosas, mas de olhar doce e adorável ternura. Imediatamente desliguei-me da pose castrense, cuidadosa, segura e vigilante e “investi-me no meu eu de simples “zé manel”, decidido a conversar, brincar e, se possível, abraçar ou pegar no colo uma daquelas crianças, muito sujas, mas muito bonitas! Não era fácil, porque o seu jeito gentio, as desviava do primeiro gesto de aproximação. Então, eu e o meu camarada do Exército português, tivemos uma ideia “brilhante”: “vamos oferecer-lhe qualquer coisa”; “porra, pá, devíamos ter trazido um brinquedo”; “não faz mal, tenho aqui uma caneta”; “isso, todos os putos gostam”; “ok, vamos dar-lha”…
Ele deu-lha e eu ajoelhei-me junto do petiz, ambos na esperança de ver nele um sorriso do tamanho daquele território. Então, o menino disse “Táchákhor”, que quer dizer “obrigado”. E os seus olhitos encheram-se de lágrimas, desatando um choro silencioso, sem, contudo, desviar os olhos lacrimejantes dos meus! Fiquei estilhaçado por dentro, como se fora atingido por um qualquer projéctil taliban, que me não matasse, mas que me despojasse da alma! Imensamente inquietado, olhei em redor e, ó maravilha de descanso!, reparei que todos os outros, adultos e crianças, se tinham aberto em sorrisos largos de confiança! Percebíamos assim, nós dois portugueses, não só que aqueles homens nos abriam a sua hospitalidade, como também que o menino, afinal, ficara tão contente, que a alegria do seu pequeno ser não reagira com o sorriso largo que esperávamos, mas com um choro de desconcerto, porque sentiu a vergonha de receber algo que agradece, mas que, ali, não lhe serve para nada!
Que lição de vida!...
Quando a distribuição acabou (correu tudo às mil maravilhas), regressámos a casa, felizes. Simplesmente felizes! Neste ambiente de paz interior e de dever cumprido, até o condutor do meu “humvi”, decidira adocicar o ambiente, pondo a tocar o seu MP3, com colunas que faziam irradiar música por toda a viatura.
Por ironia, quem se ouvia eram os excelentes Coldplay, na sua fabulosa “Viva la Vida”!... 

 

Actualizado em ( Quarta, 09 Março 2011 17:33 )  
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