A Arca do Senhor Castello-Lopes
Há uns dias, enquanto passava os olhos pela televisão, vi no ecrã uma fotografia em tom sépia, tirada em 1957 por Gérard Castello-Lopes, numa das eiras que havia em Riachos. Como tudo na televisão aparece e desaparece rapidamente, fiquei a pensar naquela imagem, enquanto a emissão prosseguia e deixava para trás a notÃcia que assinalava a morte do fotógrafo, que residia em Paris. Procurei saber um pouco mais sobre a sua vida, e no pouco que encontrei percebi que teve uma vida plena e boa. Não consigo imaginar por que dificuldades tenha passado. Parece ser uma daquelas pessoas a quem tudo correu bem; uma daquelas vidas afortunadas, em que nada foi desperdiçado, pelo contrário. Continuou o negócio do seu pai, José Castello-Lopes, envolveu-se em inúmeros projectos artÃsticos, dedicou-se à fotografia, sendo um dos históricos nessa área, em Portugal. Ele viveu um tempo que eu não pude viver, mas que me deixa estranhamente nostálgico. Não sei como é possÃvel sentir-se saudade de um tempo que não se viveu, mas no meu caso talvez deva a uma inconsequente vontade de ter estado ali, naquele instante em que a câmera de Gérard decalcou o tempo, numa das eiras que havia em Riachos, há pouco mais de meio século. Eu podia ter sido aprendiz dele; podia ter sido um dos trabalhadores que ele fotografou; podia até ter sido uma enxada ou uma árvore, não me interessa. Mas gostaria de lá ter estado, naquele tempo. Gostaria de ter sido um dos pedreiros que construiu o cinema que o seu pai lhe deixou, gostaria de ter sido o projeccionista que encheu aquela sala de sorrisos e espanto, gostaria de ter sido a lente por onde passou a luz dum lado para o outro, gostaria de ter sido aquele minúsculo túnel de luz que fixou um tempo na pelÃcula da câmera de Gérard, ou que foi projectado na tela do cinema OlÃmpia. Não me interessa o que pudesse ter sido, desde que pudesse ter lá estado. Não tenho essa memória que alguns riachenses com certeza têm, por isso invento-a, falseio-a apenas para me enganar e me levar a esse tempo tão diferente de hoje. Terá sido melhor? Pior? Não sei. Por isso gostaria de ter sentido na pele o que era viver aquele tempo; sentir aquilo que hoje me parece ser uma fábula: era uma vez uma aldeia no campo ribatejano, onde um homem construiu uma sala de cinema para que a gente pudesse sonhar... Ao contrário do seu pai, Gérard não acreditava que uma imagem pudesse valer por mil palavras, e é verdade, não vale, creio. Uma imagem vale por si mesma, descreve-se em poucas palavras; é o que se vê, simplesmente. Aquilo que está antes, depois e atrás dessa imagem é que vale por muito mais que mil palavras. Daà a importância de obtermos essas imagens, cuidarmos delas, falarmos sobre elas, não como culto ao passado, mas como entedimento do que somos. O que seria de nós sem as fotografias do Largo de Riachos, no inÃcio do século passado? Decerto que Gérard Castello-Lopes não tinha uma noção precisa do valor histórico das suas fotografias. Designava-se a si mesmo como fotógrafo amador, motivado por um certo Ãmpeto criativo, mas impedido pela sua modéstia em ir além disso. Esteve na nossa terra e nós sabemos porquê. Basta passear pelo campo para perceber que ainda é possÃvel vislumbrar o encanto deste sÃtio. E tudo isto é nossa herança: a terra, o rio, as pedras, as ruas, as paredes. Fica a rua com o nome de José Castello-Lopes; fica a casa onde viveu a sua famÃlia, que parece ser uma casa destinada a ser habitada por famÃlias de talentos.
Pergunto-me se naquele sótão não haverá uma arca com segredos e tesouros, à espera que um destes dias seja aberta pelos seus justos guardiões.