o riachense

Sexta,
19 de Abril de 2024
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Célia Barroca

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Paula Rego, o álcool e as crianças


Mais uma vez aqui estou de volta à obra da pintora Paula Rego, uma das mais lúcidas personalidades do nosso tempo, com uma visão tão acutilante da sociedade, que choca mesmo quem não descodifica logo o que está a ver nas belíssimas imagens, espelhos de nós próprios, que despudoradamente nos oferece.
Quem visita a Casa das Histórias em Cascais, museu que expõe muitas das suas obras, confronta-se com uma série de quadros que, como muitos outros, deixam muita gente perplexa: as personagens dos diferentes quadros apresentam sinais de embriaguez, homens, mulheres, mas também crianças. Não é vulgar ver pinturas que retratam bebés alcoolizados. Estas foram no entanto algumas das formas com as quais a pintora respondeu ao convite para criar uma série de rótulos para garrafas de vinho, tal como alguns outros artistas já fizeram. Mas a sua irreverência, associada à sua perspicácia e ao desejo de com a sua obra intervir no mundo que habita, levaram-na a ver-se confrontada com a recusa da parte da empresa vinícola em aceitar tais rótulos, e a uma ameaça de processo judicial, compensados com uma exposição das obras em questão. Elas lá estão para quem quiser ver. E se no cruel confronto com as obras tivermos a veleidade de pensar que se trata de fantasias da autora, ou de retratos de um Portugal já desaparecido, deixemo-nos nós de fantasias, porque a realidade é cruel, mas existe. Paula Rego não deixou passar a oportunidade de, num país com uma elevada taxa de alcoolismo, nos oferecer mais um espelho da sociedade portuguesa, e não só.
Mas voltemos às crianças. Afinal como e quando é que o alcoolismo atinge as crianças? Sempre atingiu. As crianças filhas de pais alcoólicos sempre sofreram ao verem os pais em estados que não entendem e que as perturbam, mais ainda porque ao alcoolismo está muitas vezes associada a violência doméstica. As crianças filhas de mães alcoólicas começam ainda no útero materno a sofrer os efeitos do álcool no seu organismo, desenvolvendo más formações e problemas para o resto da vida. Há no entanto outra forma de contacto nefasto com o álcool, que é menos conhecida, menos falada, mais camuflada, tolerada até, porque muitas vezes é considerada sem efeitos negativos: é quando os pais levam os filhos pequenos a experimentar bebidas alcoólicas, e o fazem com regularidade. O álcool num organismo ainda em formação (o fígado e o cérebro em especial,) pode provocar defeitos físicos e mentais irreversíveis, incluindo o atraso mental. Num organismo frágil e ainda em formação, os efeitos do álcool são verdadeiramente nefastos.
Em alguns sítios na internet que falam da relação do álcool com as crianças, aparece um discurso que é quase uma desculpabilização para os pais. Como em qualquer assunto na internet, é preciso separar o trigo do joio, e procurar informação credível. Não tenhamos ilusões, não existe qualquer possibilidade de desculpabilização. Os pais sabem o que estão a fazer, as crianças não têm consciência do que lhes estão a fazer. Do mal que lhes podem irremediavelmente causar. Sabemos que filhos de pais alcoólicos não se tornarão necessariamente alcoólicos, muitas vezes até acontece o contrário, os traumas são tantos e tão dolorosos, que se tornam completamente anti-álcool. Mas a iniciação ao consumo de uma substância que cria dependência (porque se trata de uma droga como qualquer outra, embora de consumo legalizado), para além dos malefícios já referidos, pode criar uma dependência para o resto da vida, dependendo evidentemente das características pessoais do indivíduo. Mas ninguém sabe como é que cada indivíduo responderá no futuro a essa iniciação. O que importa é que os adultos tenham consciência de que, ao levarem uma criança a consumir álcool, estão a cometer um crime pelo qual poderão ter que responder perante a lei e perante a vida futura dessa criança.
O que leva os pais ou outros adultos a iniciar as crianças no consumo do álcool? Existem várias respostas: o machismo ainda existente: “preparar o meu filho para ser um homem de barba rija, que aguenta muitos copos, e a quem o consumo de álcool dá estatuto” (claro que aqui se trata de pais, infelizmente, já alcoólicos). Levar as crianças a sossegar, ou a dormir. Há casos mediáticos, em que instituições clandestinas que recebem crianças lhes dão bebidas alcoólicas para as sossegar. Mas também há pais que, desconhecendo os malefícios do álcool nas crianças, fazem o mesmo. E, é claro, ainda deverá haver casos em que o álcool, neste caso o vinho, serve de alimento às crianças, em localidades e em famílias onde infelizmente existe essa ancestral tradição, associada a condições de vida precárias. Para os pais ou quaisquer outros adultos, de sociedades modernas do início do século XXI, com internet, com bibliografia numerosa sobre o que é uma criança, e os cuidados de saúde a ter com ela, não há desculpa.
Existe um organismo oficial de protecção à infância e juventude, a Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco – CNPCJR. Esta Comissão considera que a criança ou o jovem está em perigo, entre outras situações, se “não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal.” Qualquer pessoa que conheça situações de perigo para qualquer criança ou jovem pode comunicá-las directamente a esta entidade, ou a outras entidades competentes em matéria de infância e juventude, nomeadamente autoridades policiais, judiciárias, autarquias locais, segurança social, escolas, serviços de saúde, forças de segurança, associações desportivas, culturais e recreativas, que por sua vez as comunicarão à CNPCJR.
As crianças têm direitos. Neste caso, o direito de crescer sem ingerir substâncias que põem em risco a sua saúde, o seu futuro, a sua vida. Paula Rego não perdoa. Retratos de uma sociedade onde o alcoolismo é frequente, lá estão, em Cascais, a lembrar-nos que muita coisa ruim começa precisamente na infância.

Junho de 2011

 
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