o riachense

Sexta,
26 de Abril de 2024
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Pedro Barroso

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O Mestre das cores e dos volumes

 


O mestre saltitava de bengala na mão, dando uns pulinhos.
Sentia-se que, antes de sair de casa, cuidara do cabelo, escolhera as cores, o lenço de pescoço, o casaco, e que tudo tinha de estar composto.
O seu gosto pelo belo, o seu conceito, vivência e exercício da beleza eram de tal forma apurados que, ao perguntarmos como vais? - Ele nunca respondia: estou bem.
Respondia: - estou bonito.
Fulcral na vida, importante mesmo, para ele, era estar de bem consigo e com a beleza.
Aprendi essa lição entre muitas outras, à mesa do velho café Central da Golegã, em tempos de magia e noites de encantamento. As toalhas de papel ficavam marcadas pelo génio do Mestre, pelas suas explicações, grafismos, riscos e manchas.
Estar com ele era um exercício permanente de inteligência e procura da diferença. A sua obra tem uma modernidade exemplar, única e intemporal. Furou todos os estilos e convenções, todas as modas e tendências. E criou uma escola imensa que se define pelo traço forte, as cores ousadas e definidas, os bronzes corajosamente pintados, os rostos e corpos feitos em riscos de síntese e simbologia, os traços espontâneos e geniais.
Fraca figura de homem frágil, fez no entanto, estatuária de referência e figuras enormes em bronze fundido. Um dia, já mais medroso das alturas, pediu-me que subisse ao escadote, no velho atelier da Avenida da Índia, para molhar o barro e cobrir melhor com um plástico enorme a estátua que estava a fazer. Senti-me um discípulo de privilégio.
Essa escultura está hoje, salvo erro, na estação de metro de Picoas. Outras vivem por aí, pelo país fora, pelo Mundo. Sempre que eu ia actuar aqui ou acolá e o avisava disso, várias vezes me pediu que visitasse um baixo-relevo, um tríptico, um painel, uma escultura pública; e eu, sempre que podia, lá lhe trazia a fotografia desse filho perdido da sua arte, plantado algures pelo país a fora.
O próprio ambiente que se respirava no velho e imenso ateliê era sempre original. Não esqueço que quis por um dia uma maçã no lixo. Estava bichada. Criava mosquitos já à sua volta. Mas foi muito contrariado que ele cedeu. Aquela maçã, naquele sítio, tinha uma função estética. Assim era o Mestre.
Lembro-me que, em Lisboa, era eu professor na Veiga Beirão, ao Largo do Carmo, e ele em Belas Artes. Encontrávamo-nos então amiúde, na Brasileira, entre tertúlias de artistas, escritores, músicos, pintores, ou gente aspirante a tudo isso. Mas, se eu acaso estivesse sentado nalguma mesa mais recuada, bom, …ele demorava uma hora a chegar ao fundo do café, pois cada mesa era um novo mundo de cumprimentos, seduções, explicações, abraços e vivas discussões de intensa criatividade.
Foi uma surpresa encontrá-lo depois na Golegã. Em Lisboa nunca se tinha referido, sequer, em conversa, essa nossa pátria comum. Foi então um enorme companheirismo que nos envolveu. Eu, lutando pelas palavras e sons; ele, lutando pelas cores e pelas formas. Jantámos anos seguidos, quase todos os dias, pois as suas estadias por cá eram cada vez mais prolongadas; e sempre que com ele convivia, só, ou em tertúlia, aprendia-se sempre de tudo, desde a alegria da vida, às velhas canções da fanga, aos segredos dos fundos e das cores, à própria poesia que também fazia.
A sua casa era um acto delirante de modernidade e espanto – mobília feita em andaimes, tipo tubus, móveis pintados nos sítios que só ele sabia, um ambiente surreal de criatividade febril, no seu pensar moderno de total alheamento pelos dogmas da mobília convencional.
Discutíamos a força da arte contra a força dos cinzentos. Tínhamos sintonias e assimetrias. Mas éramos amigos, como se deve ser amigo, sempre. Sem dogmas, mas inteiros.
Sou dos poucos artistas que pode orgulhar-se de ter retrato do Mestre MC - teria eu os meus quarenta anos. Disse de repente - senta-te aí! E começou num impulso a riscar, com fúria, aquilo quem me parecia papel de embrulho grosso, cor-de-rosa.
Em cinco minutos estava feito. Era eu; naquele espaço, no seu conceito e naquele tempo.
O velho mestre formou em mim, inclusive, o Pedro Chora, artista plástico de médio recorte e pouca ambição, mas completamente louco pela transformação das matérias e do papel em formas de comunicação, recado íntimo, denúncia, erotismo ou amizade. E divirto-me.

As toalhas do velho Central hoje são de pano. O Mestre partiu, deixando a sua obra por toda a parte. Mas onde quer que se ponha um quadro de Martins Correia, os outros que estiverem perto dele nessa parede… desaparecem.
Porque a força dessa fraca e nervosa figura tinha o traço de génio dos maiores.
A inquietação do Belo. O segredo da eternidade.

 

 
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