o riachense

Sexta,
26 de Abril de 2024
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António Mário Lopes dos Santos

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Carlos Tomé critica relação entre Câmara e Igreja *

 


Não há dia em que a escrita fique a zero. Desde que me conheço a aprendizagem da liberdade começa na palavra. Oral ou escrita. Na adolescência, era necessário ler os jornais democratas, o Diário de Lisboa e o República, nas entrelinhas. E sempre atento ao olhar policial dos pides conhecidos e disfarçados que cercavam as mesas de convívio nos cafés Portugal, Abidis, Viela, Muxima, Valeriano. A verdade é que a palavra, escrita e oral, durou muito mais tempo que esses lugares, que marcaram profundamente, no seu crescer e sentido cívico, político e cultural, a minha geração. A palavra durou muito mais que os interlocutores. O tempo, a vida, o acaso, a profissão, tornaram efémero o que se julgava perdurável, descobriu-se com o amadurecimento que a única realidade é a mudança e, ainda que de forma dolorosa, a fragilidade dos afectos. Há na minha vida um punhado de rostos que só a palavra visualiza, lugares de habitação perdidos com o tempo e cuja ausência abriu gavetas no armário da memória, com quem mantenho os fios de ariadne num labirinto de sombras e claridade, a linguagem do corpo no palco que lhe coube neste espaço/tempo planetário. Não lhes escrevo os nomes, são sons e melodia e ecos nas colinas do sangue, retratos que espreitam nos meus olhos a vida que é a sua enquanto eu viver. Confronto-me com os sonhos que o vento dispersou, quando partiram, abro o rosto à carícia do sol neste início de Outono, estão à minha volta como uma assembleia de gente interessada nos problemas dum futuro por que arriscaram ideias e actos de confronto e resistência, dum futuro que lhes pertence tanto como a nós que o vivemos no quotidiano.
A escrita, percebem, não pode ficar a zero. O mundo está difícil, é preciso dizer a outrem que a leitura é um dos poucos caminhos em que o rosto se renova na água que vem de longe, desde que a corrupção e o poder se vestiram de fardas e religiões para destruir o caminho das estrelas que o homem traz em si desde o início. Éramos demasiado inquietos, para assumir por muito tempo a prisão partidária, demasiado interrogativos para os dogmas das certezas sindicais, demasiado ingénuos para aceitar que os combates eram limpos e não se aguardavam alternativas no que viesse depois. Talvez poetas, no sentido que António Ramos Rosa pôs num livro de ensaios publicado pela editora Morais, Poesia Liberdade Livre, de 1962. E descobrimos, nesse tempo, a guerra colonial e os hospitais militares, a luta estudantil e a polícia de choque, a bênção da igreja aos canhões do fascismo luso. O amor e a morte cresceram nos nossos dias, e houve que criar espaços no medo para armar a coragem e assumir a importância da participação cívica e política. E a palavra era uma cobra rebelde nas aulas nacionalistas, nos poemas publicados, nos livros passados à socapa, no congresso de Aveiro, nas reuniões clandestinas, na liberdade da viagem nocturna através das ruas da vila, no abraço solidário de cidadão livre numa pátria amordaçada. Nunca houve uma época em que tantos rostos surgiram, iluminados pela grandeza da luta, contra os predadores disfarçados de regras de moral e ordem pública, detentores do direito de apedrejarem a palavra, torturarem-na em nome da fé, queimarem-na nas fogueiras da inquisição que nunca deixaram de querer reavivar. Vivemos momentos difíceis, repito, dizem-me insistentemente as minhas vozes: cuidados com os sinais, tão semelhantes aos do tempo antes de Abril. Ao contrário do que se acreditava, não há direitos assumidos, a irreversibilidade não passa dum papel rasgado, o direito à vida está a resvalar para a luta pela sobrevivência, o ser humano começa a perceber que o palco onde assistia ao teatro da miséria alheia o transformou em actor dum espectáculo que o despersonaliza e o elimina. A palavra tem de sobreviver, passar de voz em voz, de alma em alma, como uma flor do que de melhor é herança da humanidade: o direito à liberdade, à paz, à saúde, à casa, ao amor, à educação. Não é barato, nem é durável. Cada geração traz os seus tijolos, acrescenta as sílabas, inventa novas paredes, e os livros crescem na resistência, na dignidade, na coragem, também no medo de se não ser capaz, de se trair.
Não pode haver um dia em que a escrita fique a zero. As folhas estão abertas. Quem quer continuar?...

* título de artigo no Jornal Torrejano

 
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