André Lopes Opinião
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O mundo está a mudar, Obama? Papa Francisco? Zé Povinho?

Não sei o que vai ser dum país onde descem as percentagens de nascimento, aumenta a percentagem de idosos, diminui a percentagem de trabalhadores, encolhe de forma progressiva a população jovem com habilitações médias como nenhuma geração anterior conseguiu, por obrigação de buscar fora o que o seu país lhe não garante: trabalho, protecção social, futuro. Onde de «a minha pátria é a língua portuguesa», de Pessoa, se passou a dramática dúvida de Jorge de Sena, num poema famoso, que deveria ser lido, reflectido, analisado, em todas as salas de aula nacionais, Carta a Meus Filhos Sobre Os Fuzilamentos de Goya, escrito em Lisboa, a 25 de Junho de 1959. Demasiado longo para a sua transcrição, demasiado humano para não ser colocado na parede das nossas recordações mais vivas. Só a parte final, para que o procurem…

… confesso que,

muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos

de opressão e crueldade, hesito por momentos 

e uma amargura me submerge inconsolável.

Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,

quem ressuscita esses milhões, quem restitui 

não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes

aquele instante que não viveram, aquele objecto

que não fruíram, aquele gesto 

de amor, que fariam «amanhã».

E, por isso, o mesmo mundo que criamos

nos cumpre tê-lo com cuidado. Como coisa

que não é só nossa, que nos é cedida

para aguardarmos respeitosamente

em memória do sangue que nos corre nas veias,

da nossa carne que foi outra, do amor que 

outros não amaram porque lho roubaram.

Passado mais de meio século sobre a sua escrita, quase quarenta sobre o 25 de Abril, Portugal só está no bom caminho nas parangonas da publicidade dos media controlados pelo PSD e o CDS. Percorra -se a informação que corre na Internet, no Facebook, noutras páginas do género. Lê-se o que nunca vem na imprensa diária, nem nas televisões nacionais. É um outro país, mais democrático, plural, anárquico, contestatário, uma Mafalda ao nosso ritmo, onde se revelam, por vezes com acinte, por vezes com má-língua, as relações dos que detêm o poder, das suas ligações com as outras formas de poderes que estruturam uma nação. Relembram-me, com alegria, a imprensa nacional do último quartel do século XIX, onde se chamavam os bois pelos nomes e se obrigava o contestado, ou a justificar-se, ou a virar a cara, ou a um duelo de honra. Leia-se a Pátria, de Guerra Junqueiro. Com a devida distancia, há algo que se perdeu, não na Primeira República, mas no Salazarismo. O olhar de frente, a palavra de honra, a coragem da denúncia pública, sem pseudónimo, com assinatura reconhecida. 

A Internet é o reverso do espelho do discurso sobre austeridade, onde se premeiam os Jotas dos partidos com assessorias em tudo o que o poder económico e os seus lacaios políticos controlam, enquanto os outros jotas, fora do arco da governação, jovens licenciados, mestres, doutorados, técnicos especializados, são obrigados à Peregrinação pelos cinco cantos do mundo em busca do direito à vida, na sua multiplicidade, na sua dignidade. Mas Jota por Jota, prefiro os que, terra a terra, são os jovens a quem o país tudo recusa, filhos dos cidadãos sem nome, sem cartão partidário, sem cunha, os que, desencantados, amargurados, choram longe um país que os vendeu apreço de saldo. É o mundo democrático que permite por a vigarice feita lei, feita elite, feita compadrio, feita corrupção, feita (in)justiça, a nu, num palco onde os protegidos e os protectores são apontados a dedo nas suas intenções e objectivos que nunca coincidem com o que publicamente proferem. Vêm lá os seus nomes com todas as letras e todas as denunciadas patifarias. Na vida pública é gente de pergaminho, carro de gama alta, conta em qualquer off-shore, ou nos internacionais bancos habituais da lavagem dos dinheiros roubados aos contribuintes, em nome do empreendorismo capitalista, da vaca sagrada do mercado, seja ele dos frangos podres vindos do Oriente, do tráfico de droga, seres humanos, órgãos para transplante, armas, matérias-primas, espionagem electrónica. 

Na vida dos nossos dias, é gente que nos acusa de termos gasto acima das nossas posses, enquanto se refugiam em condomínios de luxo, frequentam hotéis, restaurantes, compram iates, aviões, vivem vidas que, por muito que tentemos, nem as conseguimos sonhar. O seu mundo não é o nosso, embora seja o nosso que alimenta esse espaço diferente, onde vivem os ricos. 

À custa de quem, não sabem? 

30 de Janeiro de 2014 

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António Mário escreve sempre às quintas-feiras em www.oriachense.pt 

Actualizado em ( Quinta, 30 Janeiro 2014 12:59 )