Pedro Barroso

Quarta, 13 Maio 2015 16:43 Opinião
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Os autores, a língua mãe e a desobediência

Em memória de mim e de todos os que aprenderam a amar a Língua Portuguesa hoje, 13 de Maio - por milagre da imbecilidade...- entrei de luto.

Fui sempre excelente aluno a Português. Nem tanto nas Matemáticas e Químicas, confesso, cuja exactidão e aridez me confundiam e perturbavam, por não permitirem opinião nem argumentos. Por isso as detestava. Não conseguia ver beleza nenhuma nem num número, nem numa fórmula química, sinceramente.

Aprendi a amar a leitura muito cedo. Meu pai ensinou-me a descobrir as mensagens enredadas e a elegância na fuga à censura pelos grandes mestres do jornalismo na altura. Norberto Lopes, Augusto Castro, Leitão de Barros, Manuela Azevedo, António Pedro Ruella Ramos, Joaquim Manso, Fernando Assis Pacheco...

Depois tive o privilégio maior de ser aluno de Latim do enorme vulto da escrita e da filosofia nacional que foi Vergílio Ferreira. Era assim que ele se assinava, Vergílio com e. Dele bebi toda a sua vasta obra, com um respeito imenso pela qualidade do que se absorvia daquelas palavras, daquela construção semântica, da sua própria desconstrução das ideias e daquela dimensão sibilina e estratosférica de pensamento.

Este razoado vem a propósito do putativo "acordo", sem acordo algum. Não teve sequer respeito pelos autores e intelectuais - pois dificilmente se encontrará um que o aprove... É aberrante, estúpido, inútil e contra natura.

Não se impõem as evoluções da Língua por decreto. Que tremendo disparate. DISCORDO ABSOLUTAMENTE. ponto. parágrafo. Não me invoquem ou remetam para portais da Língua - eu trabalho com ela há tanto tempo. Sim, se quisermos entrar por aí - por acordos anteriores – foi também asneira omitir o trema, por exemplo. É difícil explicar a um estrangeiro que aprenda a nossa língua porque se diz tranqüilo e não trankilo, uma vez que tal sinal foi abolido; e quilo se diz "kilo".

Teríamos muitos dias para conversar e debater tudo isso. Todos os acordos que houve e os que nunca deveria ter havido. Não me invoquem os neo-grafismos por razões etimológicas, políticas, comerciais, ou da oralidade corrente e aproximação dos povos. As divergências são saudáveis. Em Português nos entendemos.

As línguas nascem, evoluem, fluem e morrem; ou derivam em novos troncos. São vivas, adoptam termos, influenciam e são influenciadas como nós, seres vivos. Geram filhos, uns bastardos, outros autónomos e directos das línguas mães. Todos respeitáveis na sua pluralidade e comunhão possível. Alguma vez me passaria pela cabeça ler Jorge Amado sem ter o gosto e o sabor dos seus termos genuinamente brasileiros? E depois?

Deixemos evoluir as coisas naturalmente e não de forma decretada, fascista, opressora. Não sou sequer purista - digo "abat-jour", nunca me ocorreria dizer "quebra luz". Mas imporem-me “espetadores” em vez de espectadores, “receção” em vez de recepção, etc... e grafia igual para “para” e pára e outras alarvidades sem sentido, em nome de nada e de um acordo que não teve em conta, repito, a opinião dos autores. Isso não. JAMAIS. Nunca!

Um dia, Fernando Assis Pacheco telefonou-me e deu-me os parabéns por um LP que tinha saído há pouco - salvo erro "Roupas de Pátria, roupas de mulher"

Admitiu que o jornal "Sete", que ajudara a fundar, era recorrentemente injusto com a minha poética e a minha obra e queria reparar o facto. Fiquei surpreso com tal assunção.

Veio a Riachos de comboio, quase clandestino. Fui buscá-lo à estação. Pedi ao Zé da Laura para fazer um cabrito no forno da padaria. Ficou divinal. Comemos e bebemos bem e conversámos melhor ainda. Tínhamos o mesmo pulsar amante pela Língua Portuguesa - criei um amigo.

Emocionámo-nos. Queixou-se da própria geração de neo jornalistas que ele mesmo encontrava a cada dia no seu quotidiano de homem de cultura. Homem brilhante, sofria por isso. Falámos precisamente disto; destas questões da Língua Portuguesa.

Na terra ninguém soube que teria por cá passado. Era já nessa altura muito conhecido mas pela "visita da Cornélia" e poucos conhecerão ainda hoje a sua obra de autor prematuramente desaparecido.

Os autores são assim. Os autores trabalham a Língua e amam-na. Com ela comunicam, e sofrem, e partilham ideias, avanços, confidências, desabafos, sentimentos. Estou de luto, triste, magoado, revoltado. Mataram hoje, 13 de Maio, injustamente, uma grande amiga minha - a minha Língua.

A língua da velha pátria mãe. Sem necessidade. Amiga de uma vida!... Em nome da verdade convoco à desobediência total. É a ultima arma que nos resta neste país de cabeça perdida. 

Actualizado em ( Quinta, 14 Maio 2015 14:17 )