André Lopes Opinião
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Não há pachorra

Perdi a paciência. Começo por me desentender, quando me dizem que este país está à beira da catástrofe. Não está. Nós podemos estar a viver pior - o roubo da minha reforma continua a subir mensalmente, tudo em nome da redução dum défice e dum vencimento, considerado pela Troika, acima do normal - mas o país tem dinheiro. As empresas, lucros. Os deputados, vencimentos e prebendas. Como os juízes. Os médicos. Os ministros, secretários de Estado e seus assessores. As elites dos partidos políticos do dito «arco da governação». Os arguidos da venda dos submarinos. Os administradores bancários. Os cada vez mais milionários deste país à beira dum ataque de nervos, mas a quem os psiquiatras de serviço encharcam de ansiolíticos para não cederem à depressão.

 A minha mulher reformou-se antecipadamente, recebe uma percentagem reduzida da reforma que poderia vir a ter, se fosse funcionária da Comunidade Europeia, ou gestora como o Mira Amaral, da banca. Ou, se tivesse um cartão partidário, ou as boas graças dum desses partidos do liberal nacionalismo social-democrata ou do socialismo que não consegue perder a avidez do bem-estar e proveitos do capitalismo. Ou como a Presidente da Assembleia da República. Ou como muitos autarcas.

Mas o fisco não se agita em relação ao caso dos submarinos. Ou das duplas reformas. Ou dos vencimentos com reformas já garantidas. 

Acha que o que a minha mulher e eu recebemos merece um assalto, não dos ilegais , que assaltam bancos, ourivesarias, moradias de luxo, automóveis de alta cilindrada, ou mais sádicos , as pessoas mais abandonadas e solitárias da terceira idade, duma forma que um gatuno que se preza e rouba os pobres deveria ter vergonha. 

O assalto às reformas é um assalto legalizado por gente que está acima das banalidades da sobrevivência. Os filhos não emigram, em busca duma resposta aos cursos superiores que, neste país, não servem para as empresas, nem para o Estado, porque regra geral, filho de peixe cristão democrata ou laranjinha sabe nadar e fazer surf nas piscinas artificiais dos condomínios fechados e policiados da linha do Estoril, e logo que tire um curso de tiro aos pratos ou um doutoramento de tirocínio por alguns anos, na adolescência, na universidade dos Jotas, logo entra como boy para um Job na secretaria dum qualquer secretário, ministro, ex-ministro, ex-secretário de estado, presidência da Assembleia ou na casa da República, gente assim. Faça-se uma lista dos manda-chuvas dos partidos, dos ex-ministros, ex-governantes, ex-presidentes, veja-se onde andam os seus rebentos. E, se tiverem coragem, publique-se.

Se isto não é corporativismo, de qualidade, é porque se não sabe entender as fotografias daquelas revistas da gente do cimo, sempre bem bronzeados, bem alegres, bem satisfeitos de existir, bem interessados em sair no colorido das páginas que vão criar ilusões nas classes sem direito sequer ao euro milhões da esperança. Eu não escrevo aqui os nomes, mas da direita à dita esquerda, são umas muito boas dezenas de milhar. Mas, em estatística, como dizem os sábios economistas dos programas televisivos pagos a preço de Judas para nos reter dentro das baias, uma percentagem residual, não influencia em nada os números do desemprego, pelo contrário. Como no país a lucidez está no Pinto da Costa, no Belmiro de Azevedo, na Fundação Francisco Manuel dos Santos, no António Lobo Xavier, no Medina Carreira, no Miguel Relvas, na Fundação Champalimaud que não trata os pobres, como o seu criador nunca se dedicou ao país, nos Espírito Santo, nos Mello, estamos conversados. Basta entrar numa urgência pública, marcar uma consulta num centro de saúde, e depois, porque a ADSE é o euro-milhões da medicina e hospitais privados, poder transformar uma consulta de especialidade a seis meses, senão a um ano, num hospital ao serviço do público, numa de três dias depois, num privado, e mais barata que a dum centro de saúde ou dum hospital do SNS, para se perceber como a Europa do Euro trabalha, em nome do internacionalismo liberal, para acabar com o que, desde a Comuna de Paris, em 1871, se transformou num objectivo de quem vende a sua força de trabalho em troca dum salário - o direito a algo brumoso, como a igualdade. Nessa altura, os fuzilados, antes de o serem, gritavam: viva a Humanidade. Infelizmente, a surdez trocou, neste país, ao longo de décadas, o José Afonso pelo Marco Paulo, a Natália Correia pela D. Branca, as três Marias pela Maria Luísa Albuquerque. 

Não me venham pedir o meu voto. Já fui roubado demais para acreditar nesta partidocracia plutocrática. O país já nem me preocupa. Já nem existe. Vivemos num saguão dum hotel de refugo vendido ao petróleo angolano, ao comunismo sui generis chinês, ao popularucho telenoveslístico brasileiro, às máfias do leste e às da droga da América do Sul, à finança alemã e ao espírito colonial britânico. Não porque o país lhes interesse, mas porque é, no seu salão e bar, a plataforma onde estão instalados os mapas dos percursos para a conquista da Europa da especulação e do antagonismo nacionalista.

Não há mais pachorra.

27 de Fevereiro de 2014 

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António Mário escreve sempre às quintas-feiras em www.oriachense.pt 

Actualizado em ( Quinta, 27 Fevereiro 2014 01:08 )