André Lopes Opinião
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Que voz tem este povo que se não ouve?

Quando, pela imprensa, fiquei a conhecer a nova classificação dos hospitais públicos, definida pela Portaria 82/2014, não precisava de qualquer curso de administração hospitalar para compreender que o destino, há muito pressentido, do Hospital de Torres Novas, integrado no Centro Hospitalar do Médio Tejo, se aproxima do seu fim, como hospital público. Das especialidades obrigatórias nos hospitais do grupo 1, só teria possibilidade de existência a pediatria, e não é crível que um hospital sobreviva, quando o objectivo político é esvaziá-lo de todas as valências. A Comissão de Utentes de Saúde do Médio Tejo, honra lhe seja feita, bateu-se quase sozinha contra tal situação. 

Transformar a saúde numa mercadoria, o direito a ela restrito às condições económicas dos utentes, o uso de determinadas terapias dependentes daquelas e da idade, a qualidade entregue aos privados, à custa do erário público. Não fosse a teta do Estado e a maioria desses hospitais, como as Escolas, as Universidades, etc, nem existiriam! 

Deixou de valer, em política de saúde, como no resto, os direitos constitucionais. O dinheiro permite o privado, o público tem de ser rentável, como a venda de salsichas em promoção nos hipermercados. Não é, fecha-se. Não é, acaba-se. Morre-se por causa disso? Poupa-se no que se paga em reformas, em medicamentos, em tratamentos. 

Ante a inevitabilidade da destruição do hospital de Torres Novas, a pergunta que eu faria ao Ministro da Saúde - queria lá saber do Engenheiro Esperancinha, que está pago para fazer o que faz e é duma inutilidade absoluta ouvi-lo numa Assembleia Municipal ou noutro sítio qualquer - é a quem vai ser entregue o Hospital? Aos Melos? Ao Espíritos Santos? À angolana Isabel dos Santos? A uma seguradora? A quem? 

Estou certo que parte da Assembleia Municipal não aceitará a minha dúvida. Porque era preciso também esclarecer que medidas tomaram os partidos com assento nela em relação ao esvaziamento do hospital, que chegou a ser considerado um dos mais importantes do Ribatejo. O PS? O PSD? O CDS? Como informaram as populações do que se preparava e do que iriam perder? Como agiram quando viram espoliar o hospital de Torres Novas, em nome do deus dinheiro, de praticamente todas as valências que tinha, distribuindo-as por dois hospitais políticos, fabricados nas secretarias do Ministério da Saúde com os deputados e grupos de interesses partidários associados. 

A estes não importaram, a situação geográfica, as ligações rodoviárias, os meios de comunicação para o único sítio - Lisboa -que tem tudo, os custos de transferências de pessoal especializado, equipamentos. Criou-se um artifício - um hospital construído para outros fins, noutra época, às moscas, no extremo do Ribatejo - para destruir o que estava vivo e operativo. Lembra as migrações forçadas pelos mitos do Eldorado: um concelho de cerca de 40.000 habitantes a viajar de ambulância para território inóspito e sem estruturas de resposta. O único concelho com dois nós rodoviários à A1, com ligação à circulação ferroviária principal, que servia, em distâncias médias mínimas, inúmeros concelhos limítrofes. 

 Voltar a reunir com a Administração do Centro Hospitalar do Médio Tejo para ouvir mais um conto de fadas? 

Se houvesse um mínimo de vergonha em muitos dos deputados municipais que, com o seu silêncio, a sua cumplicidade, permitiram que se chegasse a um fim sem honra, nem razão, além do dinheiro e do interesse germânico, pelo mercado da saúde em Portugal , do esvaziamento e trágico fim duma conquista de Abril, só havia um caminho coerente: demitirem-se. Lamento dizê-lo. Mas as Câmaras socialistas, de que esta é continuadora, são culpadas da concretização do objectivo que este governo tinha na manga para o Hospital de Torres Novas. O seu encerramento. A sua provável privatização.

Os seus principais responsáveis, em 20 anos, mais não fizeram que deixar partir, como se não fosse necessário, como se não importasse, comércio, indústria, agricultura, serviços sociais, de saúde, educativos, culturais, recreativos, disseminados pelas freguesias. Em troca, ofereceram-nos um concelho envelhecido, deserto, onde, uma vez por ano, se inventa uma burricada saloia a que chamaram Memórias da História - nem são memórias, nem história, apenas fraco circo e mau teatro - e, isso sim, a troco duma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma, com base num défice cada vez mais volumoso, que o PAEL disfarça, mas não elimina. O Hospital ainda lhes poderia ter servido como um dos objectivos de luta. Nem isso fica aos socialistas locais para a história que um dia, sobre estes tempos de puro desamor, se escreverá.

Mas, também não deixa de ser estranho o silêncio, a resignação, a indiferença, o desapego com que a população concelhia aceita este retrocesso a um passado de miséria e escassez. 40 anos depois de Abril, este povo que povo é, como se escreve? Uma vez mais espera um D. Sebastião, um marquês de Pombal, um Sidónio Pais, um Humberto Delgado, um MFA? Quatro décadas depois, com um analfabetismo reduzido a 4 ou 5 por cento, com uma população escolar universitária de reconhecida qualidade, já não se pode usar a eterna desculpa de que está a ser enganado. Que caminho quer? Que caminho é? A emigração? O criado de servir da Europa do Centro e Norte? O adepto incondicional da esperteza provinciana do desenrasca que se tornou emblema da Nação? Ou o judeu errante de todas as diásporas do português sem pátria, nem futuro?

O que lhe diz a perda do Hospital de Torres Novas? É essa voz que não conheço. É essa opinião que gostaria de ouvir. Actualmente, só a das elites políticas me chega. E essa deu no que deu, ainda que alguns, poucos, tentassem, como sempre o fizeram, resistir.

7 de Maio de 2014 

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António Mário escreve sempre às quintas-feiras em www.oriachense.pt 

Actualizado em ( Quarta, 07 Maio 2014 10:21 )