António Mário Lopes dos Santos

Quinta, 15 Janeiro 2015 09:38 Opinião
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Uma coisa aos olhos do homem

Estava quase pelos meus três anos, quando Vasili GromadsKi da 100.ª Divisão de Atiradores do exército soviético que participava na ofensiva Vístula Oder, chegou a Auschwitz. Um milhão e cem mil judeus mortos nesse campo que Himler seleccionou para o extermínio nos últimos anos de guerra, Cerca de 200.000 outros entraram nesse campo, 140 a 150 mil polacos não judeus, 23 mil ciganos, 15 mil prisioneiros de guerra soviéticos e mais 25 mil outras pessoas de diversas nacionalidades. As câmaras de gás e os fornos crematórios foram os instrumentos para o Holocausto, além da fome, da tortura, do assasínio, praticado em nome da pureza duma raça! 

70 anos depois, pessoalmente não acredito que o povo alemão ignorasse o que os nazis estavam a implantar na Alemanha e depois , durante a guerra, nos países invadidos a oeste e a leste. Por muito que uma corja de fanáticos domine o poder, e se defenda com a guarda pretoriana dos SS e da Gestapo, a informação percorre no diz-se diz-se do quotidiano, nos mercados, nos cafés, nos eléctricos, nas escolas, nos hospitais, nos tribunais, na atmosfera das ruas. Nos arredores do mundo concentracionário as populações civis ignoravam, ou faziam-se desatentas?

No 25 de Abril português não deixou de haver fascistas, agentes e informadores da PIDE? E isso não impediu, durante quase 50 anos, que o medo fosse um filme dramático quotidiano, uma forma trágica de respirar lusitana, onde se procurava não falar dos amigos e conhecidos presos, das torturas de que se conheciam pormenores, das cadeias políticas, das solitárias, da violência gratuita contra os presos, da descriminação e perseguição quotidiana de quem resistia, do desemprego e da perseguição sistémica a que sujeitavam os funcionários públicos que se assumissem democratas. Um país subterrâneo, que não aparecia na imprensa, no cinema, mais tarde na televisão, na vida quotidiana, no emprego, nos cafés, nas colectividades. Mas, quem não sabia dele? 

O fim da guerra aproximava-se. Salazar retirara a fotografia de Hitler de cima da secretária, negociava com a Inglaterra a manutenção da democracia orgânica, que não passava do fascismo puro e duro com prisões políticas em Caxias, Peniche, o campo da morte lenta do Tarrafal em Cabo Verde, um S tatuado (Sirvo Servilmente Salazar) nos cintos das fardas e nas almas dos portugueses.

Mas isso, depois de Abril, a que levou? Onde se realizou o julgamento dos crimes políticos do fascismo português, para só citar um exemplo da hipocrisia das democracias vitoriosas, quando esconderam os horrores da ditadura salazarista em proveito próprio?

O mundo não conhecera, antes do fim da guerra e da libertação dos campos, o Holocausto? Os milhares de judeus fugidos que calcorrearam as cidades e vilas portuguesas, na sua passagem para a América, não sabiam do terror de que fugiam, para não serem deportados? Não havia nenhuma, mesmo nenhuma informação, mesmo distorcida, nos centros de poder mundiais?

A memória humana é, além de curta, hipócrita. Vira a cara ao que teme, refugia-se no gueto da indiferença, ante a ameaça do que lhe pode vir a acontecer, se ceder e participar em algo que saia dos limites da prudência e do respeito da ordem. Mas não só: é também desonesta, porque, mesmo que se saiba a errar, identifica o seu projecto de vida com o dos vencedores, participa e vitoria-os nas suas formas de manifestação pública do poder. O mal desumaniza, porque a sobrevivência rói demasiado fundo o lado bom da alma humana, o animal feroz do egoísmo supera a razão, adulterando-a, pondo-a ao serviço do que se teme e abomina.

70 anos depois de Auschwitz, o nazismo manifesta-se em quase todos os países da Europa, em França prepara-se para ser governo. Não era o pai Le Pen quem, não há muitos anos, dizia que os campos de concentração eram uma invenção? Os seis por cento da extrema-direita grega nada significam? De novo ardem sinagogas, profanam-se cemitérios judaicos. Mas também judeus perseguem e demonizam o mundo palestiniano. A barbárie renasce a cada salto civilizacional, parece alimentar-se das fragilidades da democracia, tenta mesmo destrui-la, propondo como alternativa o nacionalismo autoritário das minorias fundamentalistas e extremistas.

Alguém ganha com o desconcerto do mundo?

Há quem aponte o dedo ao Clube Bildebergue, que reúne em Davos anualmente, na Suíça, as elites políticas, os multinacionais, os organismos de controlo do planeta, como a Nato, O FMI, a ONU, o Banco Mundial, a CEE, e de que nada sai das suas reuniões, análises, propostas, para as populações mundiais. Dominam o mundo, alimentam-se canibalisticamente dele, a vida humana é-lhe apenas um número estatístico para a prossecução dos seus objectivos. O dinheiro circula, integral, nas suas mãos. Nas sociedades humanas, a dívida e os juros da sobrevivência.

Vou à estante e busco o Se Isto é um homem, de Primo Levi, sobre a sua existência como prisioneiro sobrevivente de Auschwitz. E acabo a noite a reler esse documento impiedoso sobre a banalidade do mal: «Jazíamos num mundo de mortos e de larvas. O último vestígio de civilização desaparecera à nossa volta e dentro de nós. A obra de animalização, começada pelos alemães triunfantes, fora levado a cabo pelos alemães derrotados… Um parte da nossa existência reside nas almas de quem entra em contacto connosco: eis porque é não-humana a experiência de quem viveu dias em que o homem foi uma coisa aos olhos do homem».

30 de Janeiro de 2015
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António Mário escreve sempre às quintas-feiras em www.oriachense.pt

Actualizado em ( Sexta, 30 Janeiro 2015 11:45 )