António Mário Lopes dos Santos

Quinta, 12 Fevereiro 2015 09:38 Opinião
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Os que sucumbem e os que se salvam

«Não há quem perante a culpa alheia, ou a própria, encolha os ombros, de modo a não ver nem por ele se sentir tocado: foi o que fez a maior parte dos alemães nos doze anos hitlerianos, na ilusão que o não ver fosse um não saber, e que o não saber os aliviasse da sua quota parte de cumplicidade ou de convivência?». Primo Levi, «Os que sucumbem e os que se salvam», pg 85.

O autor foi um dos sobreviventes do campo de concentração de Aushwitz. Escreveu sobre a sua existência naquele um livro notável: «Se isto é um homem?». Transformou-se, depois, num dos maiores escritores italianos. Mas o drama concentracionário do judaísmo, mesmo para um não crente, dissemina-se como doença crónica em toda a sua obra. O 70º aniversário da libertação de Auschwitz pelas tropas russas relembraram-me leituras de décadas, do romance à divulgação histórica, do tribunal de Nuremberga à saga do caçador de nazis Simon Wiesenthal. Primo Levi obriga-me a lê-lo, mais quando a Alemanha da senhora Merkel se encontra projectada na mentalidade do primeiro paragrafo deste meu texto. Qundo um povo Ignora que se está a cometer um crime contra os povos em nome da austeridade da finança germânica é o mesmo que esquecer como a indústria alemã, ainda hoje, revestida dumas asas de pureza, se desenvolveu no período da guerra à custa do trabalho escravo e do extermínio judaico.

Nos tempos que correm, nunca foi tão actual o pensamento, sobre a Alemanha, de Levi. O garrote com que a finança alemã tenta enforcar o povo grego (nós também temos a corda no pescoço) é similar à sopa com que subalimentavam os prisioneiros do campo de concentração. Perpetuar o subdesenvolvimento para que possa ser explorado, acusá-lo de gastar demais, protegendo as gerações de corruptos que, em nome da ditadura dos coronéis, depois do rotativismo entre a direita neo-liberal e o socialismo oportunista e corrupto de Papandreau e quejandos, são a mesma essência do lema inscrito à entrada do campo de Auschwitz: O Trabalho Liberta. Os fornos crematórios demonstraram-no duma forma anti-humana que nenhum tempo conseguirá apagar. Mas não antes de cortarem os cabelos das mulheres para as fábricas de tecelagem, as peles tatuadas para os candeeiros da amante de Hitler, os dentes de ouro para a amoedagem do marco. Levi suicidou-se em 1987. Como escreveu na obra citada, salvaram-se os que, dum modo ou de outro, aprenderam a lidar com o inimigo, ou por acaso, ou por o egoísmo feroz da sobrevivência, quando o animal vem ao de cima e a razão recua para o mais recôndito do cérebro, quando estar vivo é o único pensamento possível, não há nós, só eu, depois eu, e ainda depois eu.

Percebo que os partidos portugueses da governação, o PSD e o CDS, se sintam afrontados, quando o povo grego opta por um governo da esquerda radical e um programa de alternativa à morte lenta do empobrecimento crescente, que a Troika aplica como receita que não usa para si. Os vencimentos, os privilégios, as reformas dos governantes da Comunidade Europeia, do Banco Central Europeu, do Fundo Monetário Internacional, são uma afronta à dignidade humana dos povos da Europa, tão amoral e nojenta, como o tratamento dos prisioneiros nos campos de concentração quer nazis, quer soviéticos, que cambojanos, quer no paraíso americano de Guantanamo.

 Percebo que para os nossos governantes, do ministro da Economia, ao primeiro-ministro, o Syriza seja um símbolo do inferno e Tsipras e Varoufakis demónios que abrem desejos de mudança nos espíritos tratados com o pau e a cenoura da resignação pela sobrevivência. Quando a Segurança Social lança para o desemprego 480 funcionários, em nome do saneamento do Estado, e os gabinetes governamentais estão superpovoados de Boys e Girls do PSD e do PSD, ( como outrora do PS, sejamos honestos). Os únicos que não emigram, que preenchem todos os lugares de gestão pública, que são só por si a prova de que os gastos crescentes do governo são disfarçados com as panaceias da diminuição do desemprego, o leitor não se pergunta pela razão de que a justiça portuguesa não consegue prender um corrupto e a maioria deles continuam em tudo quanto é cargo de vulto? A igualdade perante a lei não passa dum artifício, quando a desigualdade social é o emblema da civilização europeia contemporânea e o totalitarismo a forma democrática de, através do anonimato persecutório, garantir o domínio e a orientação das opções e desejos colectivos, assim como o controlo e repressão dos adversários.

É tão fácil virar a cara e dizer que se não viu, se não soube, nunca se acreditou ser possível. Talvez por isso os mortos pelo frio do nosso inverno mediterrânico não sejam culpa da política de saúde deste governo, sabendo-se que nunca encontraremos nestas urgências os nossos governantes e as suas famílias, que também adoecem, mas até na doença gozam do privilégio da desigualdade. E calando isso, cala-se tudo, até a perda da identidade humana, que é o espírito do campo de concentração em que os neo-liberais nos tentam, a bem ou a mal, enfiar, em nome da austeridade e da regeneração, que pregam, mas não praticam. 

 

12 de Fevereiro de 2015
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António Mário escreve sempre às quintas-feiras em www.oriachense.pt

Actualizado em ( Quinta, 12 Fevereiro 2015 11:47 )