João Moreira

Quarta, 08 Abril 2015 10:28 Opinião
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De médico e de louco

Abrindo a gaveta

Todo o médico viveu histórias que decidiu guardar na gaveta. Muitas são situações em que, futebolisticamente falando, a bola foi cortada em cima da linha de golo... O que as torna difíceis de abordar por profissionais a quem foi ensinado que não podem falhar jamais e que têm de manter essa aura de infalibilidade perante os doentes.

A Isabel era uma mulher jovem, saudável. Conhecia-a de consultas anteriores, sempre por situações sem gravidade ou ao acompanhar o marido ou os filhos. Entrou no consultório já o dia ia avançado, muitos doentes à porta e pouco tempo disponível. Foi educada como sempre, desculpou-se por vir assim a correr. Explicou que lhe doía a barriga e tinha tido diarreia, tinha comido qualquer coisa que não estava em condições. Em poucos minutos fiz-lhe algumas perguntas e palpei-lhe a barriga sem encontrar nada de anormal. Rapidamente tinha no computador os nomes de dois ou três medicamentos que iriam ajudar a tratar a gastroenterite que a afligia. Uma consulta simples.

Ou talvez não. A Isabel estava mais pálida do que o costume, tinha um ar doente, seja isso o que for. Revi as perguntas na minha cabeça e voltei à carga: Vomitou? Não. Teve febre? 37 e pouco Dr, nada de especial. A dor foi sempre igual? Não, começou aqui, uma moinha, e depois veio para a direita.

Palpei-lhe de novo a barriga mas desta vez demorei-me longamente. A palpação de uma pequena zona provocava uma dor que não devia existir.

Voltei ao computador, não imprimi a receita. Expliquei-lhe que havia a suspeita de apendicite aguda, que teria de ser observada no Serviço de Urgência para esclarecer a situação e que caso se confirmasse o diagnóstico teria de ser submetida a uma cirurgia. Pareceu-me surpreendida. Julgo que pensou que estaria apenas a ser cauteloso mas aceitou a sugestão.

No dia seguinte consultei o processo informático: o cirurgião teve a mesma suspeita, os exames confirmaram o diagnóstico, a doente foi submetida a uma cirurgia sem complicações. Previa-se uma recuperação rápida.

Sorri. Pensei nela, no marido, nos filhos. Felizmente não terão a noção de que uma apendicite aguda pode complicar-se em pouco tempo. Nem que a suspeita diagnóstica surgiu mais por obra do instinto do que da ciência. Foi um corte quase dentro da baliza, algo que tem de ser aceite como natural ao exercer uma profissão que pode ser científica mas que está longe de ser exacta.

A sensação que fica é absolutamente viciante mas difícil de descrever. Senti-me como o Sherlock Holmes a derrotar o Professor Moriarty. Ou talvez como o Madjer a marcar golos de calcanhar ao Bayern. E imaginei algures o Dr Moreira com a sua bata de abotoar atrás e sem camisa por baixo, talvez com o cachimbo ao canto da boca, a soltar uma gargalhada rouca: Boa pá!