João Moreira

Quarta, 06 Maio 2015 10:28 Opinião
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De médico e de louco

Anti - bom senso

O José e a Rita são um casal dos seus 30 e alguns anos. Não os conheço, não são meus utentes, motivos de força maior levaram-nos a recorrer a mim. Acabaram de ser pais de uma menina linda e bem disposta e marcaram a consulta para que pudesse avaliar a bebé e planear os cuidados à mãe, como mandam os bons livros médicos.

Mãe e bebé estão de perfeita saúde. Os pais são adequados e afectuosos nos cuidados à pequenita. A conversa segue rápida e eles, pais pela segunda vez, pouco parecem precisar da minha ajuda. Preparo-me para terminar a consulta quando lhes pergunto se sabem quais as vacinas para além do Plano Nacional de Vacinação (PNV) adequadas à bebé, os preços e formas de administração. Quando recebo como resposta que não iriam vacinar a filha, julgo que se referem às vacinas extra – PNV, mas rapidamente percebo que não têm intenção de deixar qualquer vacina aproximar-se dela.

Engulo em seco, tento por um segundo retorquir e explicar a ciência que suporta a vacinação. Não tenho o direito, a intenção ou sequer a vontade de questionar o amor ou a dedicação de um pai pela sua filha, mas a ciência não se presta a opiniões e não necessita de “fé”, é verdade quer se acredite nela ou não. É uma causa perdida, como fazem questão de esclarecer. Logo eu que detesto causas perdidas.

É pouco profissional avançar para um pai de dedo em riste e dizer-lhe que a minha obrigação é para com a bebé, em não deixar que a prejudiquem travestindo opções culturais como pseudociência; que a ideia de que todos os médicos e enfermeiros do Mundo estão “no bolso” da indústria farmacêutica é ridícula; que o guru do movimento anti-vacinas foi expulso pela Ordem dos Médicos inglesa por (entre várias outras acusações) manipular dados de um estudo na tentativa de criar suspeitas acerca de uma ligação entre a vacina do sarampo e o autismo.

Não é profissional continuar de dedo em riste enquanto explico que numa ilha onde morem 100 pessoas e 99 estejam vacinadas, em teoria não existiria nenhum caso de doença, porque não haveria ninguém para contagiar o indivíduo não vacinado – o que os ingleses chamam “imunidade de manada”; que é este mecanismo que protege as crianças ainda não vacinadas, os doentes que não podem vacinar-se (por alergia a um componente, por exemplo), os que têm compromisso do sistema imunitário ou simplesmente aqueles em que a vacina não actue; que não vacinar coloca toda a gente em risco.

Acho pouco profissional, de dedo em riste, lembrar que graças ao crescimento na popularidade de movimentos anti-vacinas em países desenvolvidos como os Estados Unidos da América, voltaram a existir surtos de sarampo ou tosse convulsa, doenças mais complicadas do que parecem, como há décadas não se via; ou que a Austrália vai passar a negar abono de família e benefícios fiscais a famílias que se neguem a vacinar as suas crianças, e que alguns países estudam mesmo tornar a vacinação obrigatória.

Tudo isto é pouco profissional. Por isso não o fiz, não o faço e não o farei. Mas ó meu Deus, como me apetecia! Se soubessem como me apetecia...


Actualizado em ( Sexta, 15 Maio 2015 09:44 )