Quarta, 12 Maio 2010 16:16 Opinião
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D. Manuel I


A cidade de Torres Novas engalanou-se de belas cores e formas, e a praça 5 de Outubro e o castelo, transformaram a sua já notável beleza num deslumbrante cenário que nos permitiu mergulhar no mundo da fantasia e do espectáculo. Sentimo-nos bem no meio das tendas, dos figurantes, dos artistas, mas ao mesmo tempo, inevitavelmente, demos connosco a pensar como os tempos afinal se repetem. Ao lado das tendas de campanha do rei D. Manuel I, dos cavalos e dos camelos (a lembrar o exotismo do rinoceronte que o nosso rei enviou ao papa numa esplendorosa, dispendiosa, inútil e despropositada embaixada), os pobres pedem esmola e impressionam-nos com as suas ostensivas mazelas. Quem organiza as reconstituições históricas nunca se esquece dos miseráveis, que apenas podiam olhar para todo o esplendor da corte, sem nunca lhe poder tocar, às vezes nem com o olhar, já que a miséria e as doenças eram para toda a sua curta vida, numa época em que nem sequer havia rendimento social de inserção. Já nesta altura a riqueza estava muito mal dividida. Enquanto uns se empanturravam, nos banquetes palacianos, com comidas atafulhadas de especiarias que deixavam os diplomatas estrangeiros estupefactos, outros confrontavam-se diariamente com a fome.
Não sou contra as reconstituições históricas, nem contra o prazer que nos trazem, de outro modo seria contra toda a cultura que afinal parece não trazer, pelo menos directamente, pão para a boca. Todos precisamos do espectáculo, da fantasia, da ficção, de interregnos na nossa vida quotidiana, de novas sensações e ritmos que os acontecimentos extraordinários nos trazem. Mas a cultura deve servir também para usarmos o nosso poder de reflexão e de crítica perante o mundo que nos rodeia. Afinal, continuamos homo sapiens, apesar da teimosia de nos quererem disfarçar de homo ecranis.
Impossível não pensar na ironia do grito de viva o rei, no ano em que celebramos os cem anos da República. Impossível não pensar na necessidade, mesmo nas reconstituições históricas, de um olhar reflexivo, crítico e humanista, sobre a nossa História.
Mergulhada na História, dei por mim dentro de outro tempo histórico, este muito mais recente, o ano das últimas eleições autárquicas, quando o presidente da Junta de Freguesia de Riachos, numa entrevista, lamentava o facto de no final do seu mandato, não conseguir deixar feita a obra que gostaria de acabar. Deixaria como obra mais notável, provavelmente, apenas um espelho de água, que é aliás equipamento que nunca ninguém reivindicou, nem fez parte do seu programa eleitoral.
 Outros ficarão com os louros de grandes e belas obras, e talvez até arrebatem a D. Manuel I o seu cognome de Venturoso.
Não se podendo fazer a estrada, a iluminação, as valetas, as obras de saneamento básico da Costa Brava, a recuperação da escola Adães Bermudes, as obras de conclusão do pavilhão desportivo, a despoluição das linhas de água, o espaço verde e o parque infantil de Casais Castelos, não se podendo garantir uma sede aos “Tesos” e à Banda Filarmónica, não se podendo colocar a primeira flor no anunciado Jardim da Vila, não se podendo mudar a face da intransitável estrada da Cascalheira, nem a imagem descuidada e os sinais de degradação do Parque 25 de Abril, acabar os passeios ou apresentar o projecto da tão anunciada Casa da Cultura, construía-se ao menos, um espelho de água. Caro, no dizer do senhor presidente e na apreciação camarária. Um espelho de água que talvez apenas sirva para um qualquer Narciso se admirar a si próprio.
Que o mesmo é dizer: quando não se pode dar alimentos e agasalho, dá-se um anel de pechisbeque. Caro. Neste caso um aquário susceptível de rapidamente se transformar numa poça de água suja, cheia de latas, e garrafas, e pontas de cigarros, e quiçá algumas moedas, como acontece com todos os espelhos de água que se prezam. Eu não tenho nada contra os espelhos de água, como não tenho nada contra as reconstituições históricas. Mas na altura não deixei de me interrogar, porquê uma obra cara, que ninguém reclamou, se há tanta coisa tão importante a fazer? Se ao menos o espelho de água tivesse a assinatura do arquitecto da bela biblioteca Gustavo Pinto Lopes, ou do Jardim das Rosas, ou a sua inauguração tivesse a assinatura de um bom encenador de reconstituições históricas, ficaríamos com o conforto de pensar que poderia ser uma obra com reais preocupações estéticas. Mas não, as obras das freguesias fora da cidade, não têm assinatura notável.
Mas fique o senhor presidente da Junta tranquilo, e não se culpabilize por não ter insistido mais com o senhor presidente da Câmara. Há coisas que não vão com insistência, antes têm que ser reconhecidas como urgência. De resto, até talvez o senhor presidente da Câmara nem tenha nenhuma culpa. A caminho das suas inúmeras ocupações nacionais e internacionais, não passa pela estrada da Costa Brava, nem pela Cascalheira, não tem filhos ou netos na escola dos Casais Castelos, nem tem que os ir levar às piscinas. Como pode saber dos pequenos dramas dos anónimos Gustavos, que por mais livros que leiam, permanecerão anónimos, ao contrário do Gustavo Pinto Lopes, que de primeiro leitor anónimo, chegou a Presidente da Câmara, a presidente da Comissão Administrativa da autarquia, e a director da Biblioteca? Como poderá saber dos pequenos dramas dos pequenos Gustavos, que nunca terão a sua cabeça celebrada em cima de um pedestal, mas que têm sangue e vísceras e sentimentos e emoções, alegrias e mágoas (tal como a arraia miúda no tempo de D. Manuel I), num corpo que muda pneus furados nos buracos das suas próprias ruas, das suas próprias vidas? E que na azáfama do dia-a-dia, nem se apercebem, que eles, os anónimos Gustavos, são incomparavelmente mais numerosos do que os notáveis, e de que no seu conjunto, realizam, incomparavelmente, muito mais obra, do que os notáveis.
Não se angustie o Sr. João Cardoso, porque continuará a ser respeitado e estimado, e ainda, porque juntamente com outros presidentes de Junta, e com os muitos Gustavos que existem por aí, já foi celebrado por Bertolt Brecht, nos versos que seguem:
… … …
O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas.

E eu acrescentaria:
Como podia o povo gritar viva o rei, quando vivia na miséria e no obscurantismo?
Talvez o Papa Bento XVI tenha preparado, para a sua visita a Portugal, um pedido de desculpas pelas perseguições aos judeus e aos muçulmanos portugueses, queimados nas fogueiras da Inquisição pedida por D. Manuel ao papa, e por todas as outras atrocidades praticadas com o aval da realeza. Mas pedir desculpa por coisas que outros fizeram, não parece ser nada de extraordinário. E depois, alguém já disse, que as desculpas não se pedem, evitam-se.
Interessante seria saber, se algum dos venturosos autarcas dos séculos XX e XXI, deixará escrito nas páginas da história do Município de Torres Novas, o seu sincero pedido de desculpas aos munícipes que não se viram contemplados com as obras básicas do saneamento básico, nas suas ruas, nas suas casas, apesar de viverem no tempo em que passámos de homo sapiens a techno sapiens, ou seja, o tempo glorioso do Magalhães, no qual podemos, em breves segundos, dar a volta ao mundo.
Regressos à História, e gritemos neste ano de 2010, Viva a República! E Viva o 25 de Abril e os homens e as mulheres artistas que o celebram, como Maria de Medeiros e outros, para que nunca nos esqueçamos dos seus ideais e das suas conquistas, para que nunca nos esqueçamos que os absolutismos já anunciados no tempo de D. Manuel I, fizeram estragos suficientes neste país.

Célia Barroca     
Maio de 2010

Actualizado em ( Sexta, 26 Novembro 2010 11:17 )