Quinta, 09 Dezembro 2010 15:06 Opinião
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BOLETIM METEOROLÓGICO
Quem somos?

Não será, certamente, novidade para ninguém a edição em dvd, em venda através do jornal Público, dos filmes que Michel Giacometti e Alfredo Tropa fizeram para a RTP no início dos anos 70 sob o nome Povo que Canta. Esta edição torna finalmente disponível – e há tanto tempo que isso se desejava - um dos melhores trabalhos de sempre sobre a cultura popular portuguesa, pela qualidade dos registos filmicos e sonoros, o rigor do projecto de recolha, a informação crítica que enquadra e completa as gravações efectuadas pelos caminhos, quintais, campos, adros e soleiras do Portugal rural, prestes a deixar de o ser.
Trata-se de um tesouro raro, de um conjunto de momentos irrepetíveis que ganhou uma qualidade mítica para a minha geração, influenciando decisivamente umas quantas vocações etnográficas, fornecendo as bases para a exploração de caminhos da maior criatividade musical ou, pelo menos, ajudando a compreender melhor o povo que somos e o país que projectamos. Levados pela memória e pela imaginação, voltamos a olhar, de ouvidos espantados, para a leveza dos rodopios que se levantam da rudeza das pedras de Trás-os-Montes, para as alegrias minhotas, para as melodias festivas das tocatas do Douro e da Beira Litoral, para a solenidade iluminada dos tempos duros da Beira interior, para a melancolia desesperançada que se espalha pelo chão alentejano, pelo som misterioso e veloz dos algarves, pelo... espera aí, pelo quê? mas não falta aqui nada?
Quase nem se dá por isso, levados no encanto e na maravilha que se transmite das vozes, dos corpos, dos instrumentos rudimentares (dos assobios!) com que se ampara o sacrifício do trabalho, com que se procura elevar o espírito para mistérios que se respeitam, com que se celebra e festeja a alegria do dia-a-dia, com que se estende um galanteio ou se procura um consolo, mas há de repente uma geografia incompleta que interrompe o enlevo. E do Ribatejo? Nada?
Pois, nada ou quase nada. Nesta, como em tantas outras vezes em projectos semelhantes, fossem de etnomusicologia ou de tecnologias tradicionais, de levantamentos de festividades ou de recolha de mezinhas caseiras. O percurso repete-se quase sempre idêntico: Trás-os-Montes – Minho – Beiras – um passo de gigante – Alentejo – Algarve. Mas no Ribatejo não havia música nem danças? Ranchos de trabalhos colectivos? Pastores e gadanheiros? Mulheres a rezar? Benzeduras e quebrantos? Facécias e jogos infantis? Póvoas ribeirinhas, tantas vezes criadas ou sobrepostas por famílias avieiras? Formas de modelar o barro, de entretecer o bunho, de fazer meia, de transportar água, de manejar o cajado, de amanhar os campos, de atrelar os animais, de atar os lenços à cabeça, de serrar a madeira, de abrir poços e valas? No entanto, praticamente com a excepção do monumental levantamento da Arquitectura Popular Portuguesa e, ainda que noutro nível, das receitas da Maria de Lourdes Modesto na Cozinha Tradicional, parece que a existência do Ribatejo só era conhecida dos próprios ribatejanos...
Não cabe aqui aprofundar a discussão sobre esta estranheza, se isso se deveu a algum entendimento do Ribatejo como uma espécie de prolongamento de Lisboa, e por isso potencialmente menos interessante como fonte de práticas populares “genuínas”, se era uma região entendida como descaracterizada pelos cruzamentos e sobreposições de gentes e tradições entre as Beiras, o Alentejo e a Estremadura, se foi alguma reacção meis ideológica à sobrerepresentação que, paradoxalmente, na mesma época o Ribatejo tinha na iconografia e na construção de uma mitologia oficial do “homem português”, de que os campinos e as toiradas foram emblemas maiores (tirando as praças monumentais, em quantas terras do Ribatejo se encontram praças de toiros? comparem com o Alentejo e, mesmo, com a Beira Baixa...).
Mas que este assunto merece estudo e reflexão, disso não tenho dúvidas. Quem somos nós, que nos definimos facilmente e espontaneamente como ribatejanos, desde que não tenhamos que explicar o que isso é? O que é que contribui para a construção dessa ideia de nós próprios? Que elementos singulares ajudam a definir uma região, internamente diferenciada e contrastante mas suficientemente distinta das que a rodeiam? E que continuidades, sobreposições e misturas temos com esses territórios vizinhos?
Em Novembro constituiu-se uma nova associação que tem por objecto a cultura popular ribatejana, a Homo Taganus (que raio de nome!) – Associação de Folclore e Etnografia do Ribatejo, que ao que parece, e sintomaticamente, logo começou por se confrontar com a necessidade de demarcação de terrenos em relação a associações congéneres a norte e a sul... Está igualmente em processo de consolidação o Forum Ribatejo, que desde há um ano tem vindo a lançar as bases para uma discussão alargada sobre a região, e não apenas no campo da etnografia. Outras associações, mais antigas, sobretudo ligadas ao folclore e ao turismo, têm trabalhado igualmente nesta área. Fala-se na realização de novos congressos do Ribatejo e do folclore ribatejano. No horizonte, entre as núvens da crise, adivinha-se o relançamento da questão da regionalização do País. Vamos saber, mais e melhor, quem somos nós?

 


Carlos Simões Nuno

Actualizado em ( Quinta, 23 Dezembro 2010 10:24 )