Mária Pombo

Quarta, 09 Março 2011 15:12 Opinião
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A preto e branco


Deito-me de barriga para cima num qualquer chão desta vila. Fecho os olhos e coloco-me numa posição confortável. Crio uma entoação – zzzzzzzzzzzzzz -  ao expirar, e é apenas nisto que penso, nesta respiração que me sai das zonas mais cansadas deste corpo pequeno.
E a mente voa. Não sei em que lugar estou agora, mas a sua envolvência permite-me pensar em mim e em como sabe bem voar sozinha, viajar por lugares fantásticos. As melhores viagens são as que são feitas de corpo e alma. E aqui não há lugar para romantismos, nem para abraços fraternos. Abraço-me a mim, com braços feitos à minha medida.
Neste lugar cruzo-me com pessoas que outrora conheci, num acaso do destino, justificado pelas amarras do tempo. Não sou saudosista, mas gosto de recordar pessoas boas e momentos importantes. Aqui não apenas os recordo, como revivo. E reavivo e reacendo e requento.
A diferença é que não há o abraço da despedida, e o que fica é apenas o sorriso da recordação e do reencontro. Os mesmos cheiros, as mesmas sensações, mas numa versão melhorada. Como um filme antigo visto em HD.
Deixo de lado a poesia das palavras, que uso com frequência para tornar mais bonito um conjunto de letras que se agrupam de forma a fazerem sentido. Fica apenas o espírito. Esse nunca morrerá.
Percorro todos os pormenores, desde a intensidade dos olhares à postura dos gestos. E reparo em coisas que nunca tinha visto. Porque reparar é parar de novo. Vulgarmente associamos a rever, que é ver de novo, o que me deixa capaz de assumir que reparar é igual a parar de novo e ver com mais atenção.
Até poderia identificar as cores, mas hoje apetece-me fazer uma viagem a preto e branco, numa espécie de carro alegórico e ao som de uma qualquer fanfarra, para enfatizar o momento. Sem a poesia nas palavras, insisto.
Hoje não sou o fogo nem a pessoa fria, que derrete nas locuções que vai rabiscando; mas também não sou o doce nem o azedo, nem o salgado. Hoje sou espectadora, e tenho o sabor de cada aroma que faz parte desta viagem. E hoje o filme tem apenas duas cores: preto e branco, e todos os “pretos claros” agremiados a estes opostos.


 

Actualizado em ( Quarta, 09 Março 2011 15:24 )