Farinha Marques

Quinta, 06 Outubro 2011 14:26 Opinião
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No centenário de Alves Redol

 

1. Sob os auspícios da Câmara Municipal da Golegã, estão em curso os actos preparatórios da homenagem - que se pretende digna e luzida - ao escritor António Alves Redol, no centenário do seu nascimento (Vila Franca de Xira, 29 de Dezembro de 1911).
O romancista era filho de António Redol da Cruz, comerciante de bastos haveres, com estabelecimento naquela localidade, como se vê de um reclamo, que remonta à década de 30, publicado no jornal Vida Ribatejana :" António Redol da Cruz - Torrefacção e moagem de cafés pelo sistema electromecânico - Mercearias a retalho e atacado - Rua Palha Blanco - Vila Franca de Xira" .
Alves Redol tinha profundas relações de afecto e de sangue com a vila da Golegã, com os camponeses da Golegã: "todas as costelas que me arqueiam o esqueleto vêm de camponês (...)" . Os avós do escritor eram camponeses: do lado do pai, João Redol, maioral, casado com Ana da Guia, avieira de condição; por banda da mãe, Venâncio Alves, ferreiro, e sua mulher Maria da Purificação.
Fanga é o quarto romance do escritor, publicado em 1943; um expressivo repertório de memórias e vivências, próprias e alheias, no quadro da vila da Golegã, na década de 40. E também um espelho, sem disfarces, das inquietações e alegrias do seu povo.

2. Do romance tirei o extracto que segue, o qual, salvo melhor opinião, é uma síntese lapidar da situação do camponês, numa sociedade profundamente estratificada, involutiva, tal qual a da Golegã, naquela época.
Sem menoscabo para os mais novos, caros leitores, atrevo-me a pensar que, nos homens e mulheres da minha geração, o texto alcançará outro eco. Vejamos então:
"Acordara com medo de despertar a minha irmã, ficara muito quieto no meu lado, embora me apetecesse puxar a manta mais para mim, pois a noite estava fria e só com aquela coberta sentia-me enregelar. O vento assobiava nas telhas e rumorejava na figueira do quintal. Afastado o sono, pus-me a pensar em milhentas coisas, daquelas que povoam a cabeça dos rapazes dessa idade. Trabalhar muito, forrar dinheiro e fazer ver a toda a gente que era um homem, capaz de chegar para a situação criada com a morte de meu pai. Como uma vez me dissessem que havia homens ricos nascidos do nada, levei a fantasia para esse lado e sonhava-me com casa e terras minhas, mesa farta, mulher recatada e filhos bem criados, tendo escola como o do meu patrão onde fora pastor. Com a escola lembrei-me do Barra e fiz o propósito de procurá-lo para me ensinar umas letras, pois queria tentar por mim aquilo que a minha família não me podia dar."

3. Pungente. É a denúncia, sem rodeios, da pobreza, do circulus inextricabilis da pobreza: o catre exígio onde pernoitavam Manuel Caixinha e Anita, sua irmã; a manta que, de tão breve, não os acobertava do frio; o quarto ou tugúrio de telha vã, à mercê do vento e da chuva; o sonho de Manuel Caixinha que representava a ambição de possuir casa própria, terras suas, mesa farta, mulher e filhos bem cuidados; e escola, em vez de guardar gado; saber ler e escrever como Josefino Barra, um farol que o guiava no sonho.
Afigura-se-me, caro leitor, que este trecho o não deixou indiferente, e saberá, por certo, aferir o realismo da sua construção.

Actualizado em ( Quinta, 06 Outubro 2011 14:38 )