Luís Pereira

Quarta, 19 Outubro 2011 15:46 Opinião
Versão para impressão

Malik

Um riachense no Mali

Domingo, 23 de Setembro de 2007, acordei às 3 da manhã, muito mal disposto. Levantei-me e fui beber água. Voltei a acordar às 4, ainda pior. Fui vomitar. Coisa muito esquisita. Mais tarde associei esta indisposição ao medicamento preventivo da malária, o mephaquin, deixei de o tomar e passei a sentir-me melhor. O pessoal do laboratório voltou ao campo para as sondagens e eu sai com o Hassan, para ir a Bakel, fazer o negócio das estacas. Quando chegámos ao km 8, encontrámos o jipe do laboratório atascado, conseguiram ficar na única poça de água em quilómetros. Tive os puxar com a minha carrinha. Segui para Gouraye. Chegámos e fomos falar com a polícia, para saber se podia comprar cerveja. Autorizaram. Partimos para Bakel. Começámos a procurar carpinteiros, que não, não faziam estacas. Na terceira casa começámos a negociar, estávamos a ir a algum lado. O carpinteiro, Malik de seu nome, perguntou-me se era francês, quando respondi que era português, começou a chorar e chamou-me irmão. Disse-me que era guineense. Foi uma situação emotiva. Chegámos a acordo muito fácil. Era de Bafatá. Os portugueses foram muito bons para a Guiné. Sabe bem ouvir dizer bem de nós. Fui com o Hassan a casa do seu irmão, trocou-me euros por francos. Comprei cerveja. Passámos para a Mauritânia. Cheguei a Selibaby e fui comer bacalhau. O dia foi produtivo. As estacas ficam mais baratas que em Kaédi.
Domingo, 30 de Setembro de 2007, levantei-me de manhã, 7 e meia, despachei-me e lá fomos nós para Bakel, buscar estacas. Levámos dois carros, porque muita gente quis “ajudar”. O Baltazar, o João, o Luís, mais o Hassan e o seu irmão Ahmed e a americana Caren. Quando chegámos a Gouraye, lá tive que voltar ao calvário, de falar com a alfândega e a polícia. Ainda não tenho autorização do governador para importação de bebidas alcoólicas. Ele tem estado sempre em Nouakchot. Depois de tudo muito bem falado e conversado, lá partimos. Em Bakel fomos direitos à casa do irmão do Hassan, o pessoal queria todo trocar dinheiro. Depois só queriam um bar para beber cerveja. Como nestas coisas acontece sempre, achámos logo um, o “Chez Jeanne”, claro entrámos e foi logo a matar, cinco “Flag” de 65 cl. E eu não queria, mas… E olha, saímos de lá quando esgotámos as “Flag” e experimentámos as “Gazelle” mas o pessoal não gostou muito. Fomos almoçar ao “Hotel Islam”. Só tinham quatro doses. De peixe com arroz. Que venha. O João só dizia e cerveja? Mas nada. Não tinham. Saímos e fomos ter com o Malik, verdadeira razão da nossa ida a Bakel. Grande festa. Toda gente se meteu com ele. Paguei-lhe. Ficou a atar as estacas em molhos. Foi-nos levar novamente ao bar da semana passada. Havia “Flag”. Mais duas para o caminho. Alugámos um táxi. Parecia que estávamos no filme do Borat, todos ao molho, um carro atado por arames e vários molhos de estacas no tejadilho. Atravessámos de barco e direito a Selibaby. Nunca pensei que fazer 45 km vezes dois fosse tão duro. Duas horas para cada lado. A areia já está seca e solta. Os carros têm dificuldade de tracção. O pó fica no ar por longo tempo.
O Malik veio a revelar-se uma autêntica bênção durante a nossa estadia em Sélibaby. Foi militar do exército português, durante a guerra colonial. Ficou lá porque era guineense, leia-se “preto” e foi preso depois da independência junto com muitos camaradas de armas, levado para um campo de concentração, ao contrário da maioria dos seus camaradas, que foram assassinados, conseguiu escapar para o Senegal, onde reconstruiu a vida. Continua até hoje a considerar-se português, vá lá saber porquê. E nós que nos consideramos diferentes dos racistas ingleses ou americanos, abandonámos muitos militares à sua sorte só pela cor da sua pele, a estes o 25 de Abril de 1974 não trouxe a liberdade…