Joaquim Madeira

Quarta, 23 Novembro 2011 15:41 Opinião
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O negro documento verde

 


No final do passado mês de Outubro, pela voz do primeiro-ministro Passos Coelho, foi apresentado o denominado Documento Verde da Reforma da Administração Local. Certamente que muita gente dele ouviu falar, mas não é menos certo, que poucas pessoas ainda se aperceberam do alcance das propostas nele contidas.
Este documento surge na sequência do memorando assinado com a Troika, o qual prevê uma reforma da administração local, baseada na diminuição do actual número de autarquias e, por conseguinte, também menos autarcas e dirigentes da administração local.
Numa apreciação global às propostas do Documento Verde, é inegável que estamos perante o maior ataque de sempre à democracia local, nascida no 25 de Abril, face ao qual não há lugar para ingenuidades.
O acordo com a Troika não passa de um pretexto para a aplicação dos velhos projectos do PSD e também do PS, de alteração das leis eleitorais autárquicas, reforçando o bipartidarismo, a centralização do poder e a limitação drástica da autonomia do poder local, consagrada na Constituição.
Hoje, estes projectos procuram manipular os sentimentos populares face à crise: o combate ao despesismo e aos excessos das empresas municipais; a ideia mil vezes repetida de que “há políticos e órgãos a mais”, usada para restringir o pluralismo e diminuir o controlo democrático dos cidadãos e das oposições.
No tocante às empresas municipais, é verdade que se devem extinguir todas as empresas que acumulem prejuízos sucessivos. Não nos esqueçamos que, se na sua esmagadora maioria, estas empresas surgiram sob o pretexto de uma melhor gestão, mas na prática foi para retirar das contas camarárias prejuízos sucessivos em distintas áreas como a cultura ou águas e saneamento. Para além disso houve um outro objectivo: reduzir ainda mais o já fraco controlo das oposições representadas nas Câmaras ou Assembleias Municipais.
É evidente que a haver uma reforma neste capítulo, algumas empresas municipais deverão subsistir, mas nada nos garante, na proposta governamental, um aumento das competências de fiscalização das mesmas, mormente por parte das Assembleias Municipais.
Em matéria da reorganização territorial, o Governo limita-se a tratar, por agora, das freguesias, remetendo os municípios para fusões voluntárias, a ser incentivadas, e adiando para o futuro o seu enquadramento legal. Esta solução não responde sequer ao objectivo enunciado, tanto mais que o grosso da despesa e das competências repousa nos municípios.
É sabido que as 4259 freguesias existentes representam apenas 0,13% da despesa no Orçamento do Estado. Em muitas regiões do país, em especial no interior, depois do encerramento da escola, do posto médico, dos correios, a Junta de Freguesia resta como único elemento simbólico da presença do Estado. Em muitos locais é o único elo de ligação das populações com prestadores de serviços, públicos e privados.
Os critérios demográficos e de área geográfica mínima para a existência de freguesias devem considerar variáveis como a orografia, a rede de transportes públicos e a concentração ou dispersão do povoamento, reduzindo os critérios neste último caso.
Duma maneira demasiado simplista, para não dizer centralista, a proposta trata o país todo por igual, em que o factor proximidade à sede do concelho é factor primordial. Por exemplo, se a freguesia de Riachos tivesse um pouco menos quinhentos habitantes, estava em condições de ser extinta, anexada ou fundida com outra, pois ficaria com menos de 5000 pessoas (dados do último Censo) e porque dista menos de dez quilómetros da sede do município. Já a Meia Via, uma freguesia que tem crescido nos últimos anos, preenche todos os critérios da proposta do governo para desaparecer! A intenção inscrita no documento, em que serão aumentadas as competências das juntas que “escaparem” à purga, não passa disso mesmo. Nenhuma é apontada, nem tão pouco é indicado se aumenta a sua independência perante as Câmaras Municipais.
Já quanto a estas, o Documento Verde não aponta nenhum caminho, para além de estipular as reduções de vereadores remunerados e de directores de departamento. É completamento omisso em fusões ou extinções de concelhos. Remete para os mesmos essa decisão, sem indicar como e quando. Quanto às Assembleias Municipais, onde é necessária uma grande reforma, sobretudo nos meios da acção de fiscalização dos executivos municipais, o documento, apenas e só, refere que devem ser aumentadas as competências destes órgãos autárquicos.
Neste aspecto, o governo ao incidir quase só sobre as freguesias, faz aquilo a que nos vem habituando desde o dia da sua tomada de posse: atacar o elo mais fraco, neste caso as freguesias. Acordou-se com a Troika a redução de autarquias. Como a divisão administrativa portuguesa não tem paralelo noutro país, pois a figura de freguesia é “coisa nossa”, para eles o importante é reduzir. E reduzir por reduzir, lá pensou o ministro Relvas, cortam-se umas quantas freguesias (que também são autarquias, pois então!), dá menos trabalho, menos contestação, cumpre-se com o famigerado memorando e ficamos todos felizes.
É consensual que poderá haver lugar a extinção, fusão ou agregação voluntária de freguesias e municípios. Mas essa decisão deveria merecer sempre o parecer positivo do respectivo órgão deliberativo, seja a Assembleia de Freguesia ou Municipal, e se necessário, confirmado por referendo local.
Mas uma outra leitura pode ser feita sobre a intenção de focalizar a reforma nas freguesias: servir de “balão de ensaio” para um futuro reordenamento e redução de concelhos. Se a coisa for por diante e correr bem com as freguesias, o governo poderá recorrer ao argumento de que às câmaras foi concedida a oportunidade de serem elas voluntariamente procederem à reforma do mapa administrativo e que não a aproveitaram. É que ninguém crê que, per si, algum município português venha a decidir auto extinguir-se, fundir-se ou deixar-se anexar pelo vizinho.
No capítulo da Gestão Municipal Intermunicipal e Financiamento o objectivo, segundo o Documento Verde, é valorizar associações de municípios de direito público, quer se trate de Comunidades Intermunicipais, quer das Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, designadamente estabelecendo-lhes um quadro alargado de atribuições e competências. Mas para o governo, o aprofundamento da legitimidade e do controlo democrático não passa pela eleição directa dos órgãos que vão gerir estas comunidades. Estes continuarão a ser um mero fórum intermunicipal, onde cada autarca pensa sobretudo no seu quintal e ninguém está legitimado e responsabilizado para assumir uma visão integradora do desenvolvimento regional.
A intenção do governo é tornar as Comunidades Interurbanas e as Áreas Metropolitanas inócuas, manter o controlo governamental das CCDR, que substituem com vantagem os governos civis. Miguel Relvas, quando era Secretário de Estado da Administração Local de Durão Barroso, afirmou que as Comunidades Interurbanas representavam “o enterro definitivo da regionalização”. O objectivo mantém-se, a linguagem parece hoje mais refinada.
Um aspecto preocupante apresentado é a democracia local. O objectivo governamental implícito na sua proposta traduz-se no reforço do bipartidarismo (PS vs PSD) e a imposição de executivos monocolores, o que reduz drasticamente a proporcionalidade e o número de eleitos.
As motivações são políticas e não meramente economicistas (como se a poupança de meia dúzia de patacos em senhas de presença resolvesse algo). Esta proposta rompe com a tradição colegial portuguesa pós 25 de Abril e concentra poderes excessivos na figura do Presidente de Câmara Municipal. Reforça o presidencialismo e estende a fulanização das eleições autárquicas à Assembleia Municipal.
O afastamento dos vereadores da oposição, normalmente sem pelouro, fomentará ainda mais opacidade do processo decisório, já que o órgão deliberativo reúne espaçadamente e os seus membros não têm tempo nem condições profissionais para fiscalizar o executivo.
Assim, não passam de votos piedosos (e hipócritas) as passagens do Documento Verde que pregam “o reforço dos poderes de fiscalização da Assembleia Municipal sobre o Executivo” e ponderam “um reajustamento das actuais competências das Instituições Autárquicas Municipais, acentuando a importância da Assembleia Municipal enquanto órgão deliberativo”.
No entanto, o Documento é omisso quanto ao carácter electivo dos membros da Câmara Municipal: diz que “os restantes membros do Órgão Executivo são escolhidos pelo Presidente de entre os membros eleitos para a Assembleia Municipal”. O método resulta em que um presidente eleito por um partido ou força local, com pouco mais de 20% de votos possa formar um governo municipal à sua escolha, sem oposição, nem tão pouco existir a possibilidade de ser demitido pela Assembleia Municipal. Só podem chamar a isto democracia os novos saudosistas dos tempos da “velha senhora”.

Joaquim Madeira - Membro da Assembleia Municipal de Torres Novas pelo Bloco de Esquerda

Actualizado em ( Quarta, 23 Novembro 2011 16:25 )