Os animais domésticos

Sexta, 25 Outubro 2013 15:30 André Lopes
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23 de Outubro de 2013
 
As recentes declarações do presidente Cavaco Silva (embora se fique sempre na dúvida se é mesmo ele que nos aparece na televisão a dizer aquelas coisas, ou se é mais uma brilhante imitação feita pelo actor António Machado com texto das Produções Fictícias) a propósito da proposta do Orçamento de Estado para 2014 têm sido já bastante comentadas, embora não nos jornais nacionais, cada vez mais decalcados do “modelo voz do dono” do Século e do Notícias de antes do 25 de Abril.
Recordemos aqui essas declarações: o Presidente da República, a propósito do envio, ou não, do Orçamento para fiscalização constitucional – quando tantas vozes autorizadas têm vindo a apontar várias prováveis inconstitucionalidades no documento do governo – disse que tal dependeria da sua avaliação dos “custos” (financeiros? políticos? quem pode saber?) de tal decisão. Ou seja, e como já alguém disse, se Sua Excelência entender que tudo aquilo está carregadinho de ilegalidades mas que é “baratinho”... siga, que o patrão está à espera.
Ninguém que esteja acordado poderá ignorar a muito difícil situação em que o País se encontra (e, neste momento, “este País” nada tem de abstracto, de facto está-se a falar dos homens, mulheres, crianças, das empresas, dos serviços, do funcionamento quotidiano da sociedade portuguesa), assim como é inquestionável a importância decisiva que a aprovação do Orçamento terá para a definição do mundo em que vamos viver – ou tentar sobreviver – nos próximos anos. Mas se estes tempos podem ser considerados tempos especiais, dada a sua gravidade para todos nós, nada autoriza a que um governo eleito há dois anos e meio e que, desde então, tem sistematicamente feito tudo exactamente ao contrário do que prometera nessas eleições (e ainda por cima as receitas dessa política de mentira não conseguiram melhorar um único indicador económico e social, antes pelo contrário), se assuma como um governo de excepção, passando por cima das leis, das instituições e das normais regras de relacionamento entre governos e governados, tal como se espera que isso aconteça numa democracia avançada, seja isso feito, ou não, com a cumplicidade de quem foi eleito para o papel de garante do cumprimento do funcionamento das instituições...
O que aqui menos interessa é se a Constituição em vigor é a que melhor pode servir a Portugal neste momento, pois para isso teria que se discutir a fundo o que é que poderíamos entender como sendo esse “interesse nacional” (como se isso fosse óbvio e igualmente favorável para toda a gente), mas sim salientar que não estamos perante nenhum governo de “salvação nacional” nem temos a funcionar nenhum “pacto de regime”, por muito que possa interessar a quem governa que seja essa a ideia que passa para a cabeça das pessoas, por isso não estamos a viver nenhum estado de excepção e a “suspensão da democracia por uns meses” não passou de devaneio senil de quem lhe escorregou a língua nas armadilhas do pensamento e, que saibamos, não chegou a entrar em vigor.
O problema é que, para oposição a estes desvarios que nada mais fazem que dar cabo da vida de tanta gente para proveito de uns poucos, ainda continuamos a pensar nos moldes a que nos fomos habituando nas últimas décadas, isto é, a manifestarmo-nos, a contestarmos, a argumentarmos, a espantarmo-nos perante a indiferença e a pomposidade de quem vem anunciar receitas a aplicar aos outros, sabendo estar isentos e acima dos efeitos dessas receitas (um exemplo, entre tantos possíveis: o secretário de estado Hélder Rosalino, habitual anunciador dos cortes de pensões e de ameaças várias aos funcionários públicos e aos reformados, é beneficiário do privilegiadíssimo sistema de pensões do Banco de Portugal, de que foi, aliás, um dos autores, e que está isento destes cortes), como se de políticos se tratasse, isto é, gente com ideias para o mundo e com uma ética pública própria das suas funções, quando na realidade apenas temos pela frente diligentes e aplicados funcionários da finança internacional – e de todas as suas filiais nacionais – para quem tudo se resume ao cumprimento de instruções, mesmo que nem lhes entendam o alcance, e à verificação de contas abstractas em fórmulas de computador (esquecendo, entre outras, uma lição básica que qualquer estudante aprende nas primeiras aulas: nenhum modelo, por mais sofisticado que seja, está mais correcto que a realidade).
Isto é, que são uma categoria menor de animais domésticos, cuja felicidade é apenas a felicidade dos seus donos. E é assim que deverão ser tratados.