Demasiado cruéis

Quinta, 10 Julho 2014 15:25 André Lopes Café Central
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Carlos Tomé

Quando o Zé Tonho Bud Spencer, mecânico dos Luzes, entrou no café e se sentou numa mesa à janela, eu já sabia perfeitamente que não ia servir um Toddy, ou um quarto de água de Carvalhelhos e muito menos um refresco de capilé. “Saia um jarrinho de mistura e um pratinho com umas taliscas de presunto e queijo para ajudar a engolir a bebida”. A mistura foi feita como de costume. Sem segredos. Só vinho branco da Adega Cooperativa da Goucha, o melhor da região, e a incomparável gasosa Baía, tudo bem fresco e despejado ao mesmo tempo para o jarro de litro. Era de beber e chorar por mais. Não tinha espinhas. A bebida não aqueceu mais de cinco minutos no mármore da mesa e o Zé Tonho já reclamava uma nova dose e depressa porque tinha que ir ao cinema. E ria-se a bom rir como só ele sabia.
 
O Zé Tonho tinha lugar marcado para as sessões da noite de todos os domingos no primeiro balcão do Olímpia. Era um cinéfilo de primeira apanha e então quando se tratava de cenas a atirar ao cómico ninguém o parava. A sua gargalhada inconfundível fazia-se ouvir em toda a sala e chegava mesmo a acordar o Enxuto que dormia profundamente na primeira fila da plateia. Ora, como o Enxuto tinha um acordar mal disposto e não calava as asneiras em voz alta disparadas à toa, só o cabo Valério em serviço no cinema o conseguia arrastar da cadeira para a rua mercê da força da autoridade.
 
A alcunha de Bud Spencer tinha sido atribuída ao Zé Tonho graças às suas parecenças físicas com o actor que se notabilizou com Terence Hill nas cenas de Trinitá dando marteladas com os punhos fechados no alto da pinha dos desgraçados meliantes. Incapaz de fazer mal a uma mosca o nosso cinéfilo haveria de dar inteira razão à alcunha quando sentado no balcão do Olímpia batia nos braços da poltrona enquanto largava a famosíssima gargalhada.
 
Tinha Bud Spencer acabado de pedir o terceiro jarrinho quando chega El Rodrigo, também conhecido por Colega, mais um cinéfilo de primeira água, depois de ter estacionado a sua Sachs Minor de encontro à parede da casa do Carlos Coxo, vindo do Largo até aí com o motor desligado e a ajudar a sarrasqueta a percorrer o caminho palmilhando o alcatrão com os sapatinhos 44 comprados na Sapataria Paulino. “Foi demasiado cruel ò vizinho, demasiado cruel” lamentava-se visivelmente agastado. Apreciador do bigodinho de Errol Flynn, da bacia de John Wayne, da cintura da Rita Hayworth e dos filmes de qualidade acima da média, El Rodrigo ficaria para sempre derrubado ao ver a Garganta Funda no Virgínia. Repleta de realidade nua e crua a rainha das películas pornográficas, uma novidade cinematográfica, haveria de dar origem a várias sessões esgotadas no Virgínia e mexeu com o mais fundo do seu ser cinéfilo. El Rodrigo nunca mais foi o mesmo.
 
Perto da hora do cinema já o João Neco, na sua impressionante velocidade, tinha trabalhado todo o santo dia a assentar tijolo, fazendo de servente e de pedreiro ao mesmo tempo, devorado um cozido à portuguesa e bebido café antes de acelerar na sua Vespa para se apresentar ao serviço como porteiro do Olímpia antes do filme começar. Nessa noite, entusiasmado pelo Zé Tonho, enchi-me de coragem e decidi ir ver o filme que desconhecia em absoluto, embora só tivesse idade para ver a Mary Poppins ou no máximo o Johnny Weissmuller no Tarzan. À socapa consegui entrar no cinema para ver finalmente um filme a sério numa altura em que o João Neco se distraiu à conversa com o Manuel Lontro. Só depois li o folheto em papel bíblia que o Chico Cego tinha distribuído, como era costume, com a programação do Olímpia e a sinopse do filme, e só muito mais tarde percebi que tinha visto A Filha de Ryan, um grande filme de David Lean, que quase ninguém conhecia, com o Robert Mitchum. Naquela noite, inchado de tanta ignorância e aborrecido pela fita não ter sido aquilo que eu esperava que fosse, vinguei-me com dois refrescos de groselha confeccionados com água da fonte do Adriano no intervalo do filme de que não percebi patavina.
 
Nessa sessão não vi nem ouvi o Zé Tonho. Se calhar faltou pela primeira vez a um filme no Olímpia. Senti um ligeiro complexo de culpa. Fiquei sempre com a impressão de que os jarrinhos não o deixaram ver o Robert Mitchum. Como diria o El Rodrigo, foram demasiado cruéis.

Actualizado em ( Quinta, 10 Julho 2014 15:31 )