Sessão de comédias no terraço

Quarta, 10 Setembro 2014 11:39 André Lopes Café Central
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por Carlos Tomé

A luzir nos seus Ray Ban, um crocodilo Lacoste ao peito e a passar a mão pelos cabelos negros, o Carlos Meco chega ao Central e não tem mãos a medir. Distribui pelos amigos duas agarrochas, três bandarilhas e um ferro curto, uma vez que estavam seis no terraço do Café. E começa a faena. As histórias contadas pelo Meco adquiriam sempre novas cores e despertavam interesses vários. Era o campeão na arte de contar histórias em que entrassem em cena as figuras mais castiças de Riachos. Mesmo aquelas que já todos conheciam eram adoradas, pois ninguém resistia a uma nova dose de riso e de satisfação pela forma como Carlos Meco as vestia de novo. Derivando a conversa para a CP de lá vinha um ror de episódios incríveis em que o Adozindo fazia de artista principal. Tomando o paleio o caminho da Escola Industrial de Torres Novas eram outros os protagonistas mas a graça redobrava. No entanto, quando perguntavam ao Carlos Meco se ele queria ir ao Largo este disparava logo “tu és tonto, a minha volta é da rua dos Condes até ao Café Central e não passo da igreja para cima”. E pronto estava dito. Nunca ninguém percebeu a razão desta promessa mas o que é facto é que ela foi cumprida.
 
No dia seguinte, a coincidência fez juntar no terraço do Central três dos melhores contadores de anedotas da região. Foi uma autêntica sessão de comédias. Uma tarde com o Zé Coelho, Zé Rito e Zé Luís Pivete era espectáculo garantido. E do melhor. A sessão começava invariavelmente com “já conheces aquela…”. Bastava este mote para saírem em catadupa piadas inesperadas, histórias sarcásticas, episódios picantes, anedotas teatralizadas. Uma panóplia imensa de casos demonstrativa da arte de fazer rir. Nada se comparava à capacidade inventiva e à graça destes três artistas. Chico Coxo, o Melro, contada pela décima vez naquela tarde, haveria de ficar na história do humor em Riachos como uma das mais interessantes e curiosas anedotas, com os intérpretes a competirem entre si para verem qual deles conseguia melhores performances. Toda a gente conhecia a anedota mas toda a gente dizia que não conhecia para a ouvir de novo.
 
Lá dentro, ouvia-se uma voz gaga “ò ò Fernando dá-me lá mais um bocadito que isto é bom”. Pela enésima vez o Fernando Paulo contava a cena do Caics, também conhecido por Carlos Augusto Simões da Silva, imitando na perfeição a sua gaguez, na Escola Industrial numa aula com o Mestre Braz em que tomou três doses de um laxante que parecia um chocolate pensando estar mesmo a comer um chocolate. Claro que as consequências foram drásticas e hilariantes.
 
Como entretanto o Fião já tinha bebido meia dúzia de traçadinhos e três bagaços de uma assentada, chegou à conclusão que estava no ponto, ou seja que estava na hora de recolher aos seus aposentos e despedir-se dos seus acompanhantes. Era o maior em trocar provérbios. “Vou andando, porque viagem parada não faz barco e quando chegar a casa deito-me logo debaixo da cama” dizia o Fião com a seriedade de sempre. E foi-se.
Ainda a tarde ia a meio e já o Batatinha tinha instalado o seu caixote de engraxar sapatos no terraço do Central, com graxa de várias cores que ia pedir aos Luzes e que habitualmente servia para pintar as caixas do peixe, tinta da melhor, um pano do resto de umas calças velhas e duas talas que o Chico Sapateiro lhe tinha dado para proteger as meias dos fregueses. Batatinha era o melhor engraxador de Riachos, célebre por conseguir estalar o pano no ar imitando o estrelar dos foguetes de Santo António. Eis que chega um cliente de categoria, dos mais prestigiados da região, que sabia apreciar a competência do engraxador e que ainda por cima pagava bem. Fatinho branco impecável, camisa vermelha de colarinhos grandes e sapatos bicudos de verniz que até cegavam. “Ò Batatinha engraxa aí os chanatos como deve ser, mas cuidado que são de verniz” dizia o Tonho Mokuna enquanto pousava o pé direito na caixa do engraxador.
 
Batatinha cresceu um palmo, encheu o peito de ar e entrou em acção. Com a rapidez de um raio percorreu o sapato com o pano embebido na tal graxa dos Luzes, tinta negra como breu, deu-lhe cinco voltas que até ficou com a cabeça à roda. Fingiu três vezes que tinha metido mais graxa nos chanatos, raspou os joanetes do Tonho, ajeitou-lhe os tornozelos e finalizou o trabalho com a arte do costume. O pano a estalar como um foguetório com a ajuda de muito cuspo cuspido sem o Mokuna dar por isso. O verniz rejubilou e ganhou um novo ar, luzia como um luze-cu no escuro da noite. Até cegava. O freguês ficou embevecido com o ar de novo dos calcantes. “Ah, grande Batatinha és o maior!” exclamou o Tonho Mokuna enquanto atirava pelo ar uma moeda de vinte e cinco tostões.

Actualizado em ( Segunda, 22 Setembro 2014 14:41 )