“Tira-lhe o micro, tira-lhe o micro”, gritaram todos em uníssono

Quarta, 22 Outubro 2014 11:39 Café Central
Versão para impressão
 
por Carlos Tomé

Tinha acabado de dar na telefonia do Central o Roberto Carlos, o António Calvário, a Lenita Gentil, o Demis Roussos e o Adamo, um lote dos melhores artistas da rádio, tv e disco. Já tinham dado, à hora do almoço, os Parodiantes de Lisboa dos irmãos Andrade, com o Patilhas & Ventoinha em lugar de destaque. Eram imperdíveis para quem quisesse ter uma certa graça no almoço ainda que o repasto pudesse não ter graça nenhuma. Só mais lá para o final da tarde haveria de dar Os Intocáveis, um programa do Rádio Clube Português no qual o Paulo Fernando ia partindo os discos que não prestavam ao mesmo tempo que dizia “este disco é intocável mas não é inquebrável” e pumba ouvia-se um barulho estridente do disco a partir-se. 
 
Lá mais para a noite quando se ligava a televisão, era mais que certo que ver e ouvir Procuro e Não te Encontro era a melhor forma de encontrar o Tony de Matos, enquanto o Artur Garcia  entrava pela Porta Secreta, logo a seguir ao Museu do Cinema do António Lopes Ribeiro, conhecido cineasta do regime, acompanhado ao piano pela “boa nôte” do maestro António Melo e pelas curtas do cinema mudo do Charlie Chaplin. Como era segunda-feira, a seguir ao jantar já o Central estava com lotação esgotada para ver o Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado no Zip Zip. A malta delirava com as rábulas do Solnado mas só teve esse prazer durante sete meses que foi o tempo de duração do programa. 
 
O Pedro Meco e o Carlos Mota, rapazolas de pouca idade mas de grandes ideias, como a do baile da gravata, não perdiam um programa destes. E quando ele acabou andaram tempos infinitos a magicar como conseguiriam fazer em Riachos uma coisa parecida. Puxaram pelos neurónios, arregaçaram as mangas, que não eram meninos de ficar quietos, e deitaram mãos à obra. Badabada, foi o nome que deram à criança.
 
Arregimentaram outra malta da corda, convidaram os artistas de variedades da casa e organizaram um grandioso espectáculo na Casa do Povo. Para além de ser a primeira vez do Pedro Barroso na sua terra, o ponto alto foi a entrevista com João Serra, o grande cabo dos forcados de Riachos, um dos maiores do Ribatejo. António Júlio Arganil, o entrevistador de serviço com a sua irresistível Lacoste, registou para a história o depoimento emocionado do forcado das mil pegas. Mas o Badabada teve vida curta pois a PIDE acabou logo naquele dia com a brincadeira.
 
À tarde, quando o descapotável vermelho parou e dele saiu um gentleman elegante no seu fato de terylene, casaco branco e calças vermelhas, óculos escuros e caracóis negros ao vento, toda a gente arremelgou os olhos e abriu alas para o desconhecido entrar no Central. Até o Damásio que tinha parado o carro de mão com rodas e ensaiava o seu célebre assobio da Ponte do Rio Kway ficou mudo de repente. Só quando o indivíduo já no Café pediu um refresco de capilé e começou a cantar a Granada é que a malta percebeu que era o grande Victor da Mari` Marques, sobrinho do Carlos Coxo, agraciado com uma voz de ouro, conhecido na aldeia como o Joselito português e que se tinha há anos exilado em Lisboa a tratar de negócios na Lélé da Cuca, uma loja meio manhosa de roupa da moda no Terminal no Rossio. Foi um autêntico festival da canção.
 
Nesse mesmo dia, o melhor viola solo da região tinha comprado um microfone novo para o seu conjunto e estava ansioso para experimentar a sua qualidade. À noite, enquanto bebia o café com um cheirinho, o Abreu ia esperando pelo resto do grupo para o ensaio. Pouco depois apareceu o Luís Catrino, o primeiro organista no Farfisa, logo a seguir veio o Luís Mota, um baixo de categoria e o Pedro Pum, a maior esperança do concelho na arte de manejar as baquetas. Só depois apareceu o Zé Manel Passita a correr porque se tinha esquecido do ensaio, despassarado como era. O Ogiva era um conjunto musical de categoria, que competia em qualidade com o Nayr e o Control, mas valha a verdade que nenhum destes lhe chegava aos calcanhares. Nem lá perto. O Ogiva ensaiava todas as quintas-feiras numa garagem do Centro Paroquial porque aí os músicos podiam dar asas à sua arte à vara larga que ninguém os chateava. 
 
A esse ensaio foi assistir o Luís Sapo, o primeiro fã de uma lista enorme mas desconhecida de fãs, de tal modo era desconhecida que as almas maldosas até diziam à boca pequena que não era o primeiro mas sim o único. Luís Sapo era tão bom cantor que às vezes o Padre até o deixava cantar aos domingos na missa e que por isso agarrou a mania de que haveria de ser o vocalista do maior conjunto da região. Tanto insistiu em cantar que o Abreu lhe passou o micro novinho em folha, mas quando o cantor começou a debitar um êxito do Marco Paulo o ranho começou a escorrer-lhe pelo nariz de tal modo que os músicos gritaram todos em uníssono “tira-lhe o micro, tira-lhe o micro”. O ensaio foi tão intenso e criativo que ficou nos anais da história do conjunto. E embora o Luís Sapo não se tenha tornado vocalista do grupo, por mor da maldita constipação, criou, sem o saber, o maior êxito do Ogiva.
 
Actualizado em ( Segunda, 27 Outubro 2014 12:11 )