Ser rico dá muita chatice

Quarta, 06 Agosto 2014 11:39 André Lopes Café Central
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por Carlos Tomé
 
Rodou as 28 pedras de marfim do dominó com as mãos abertas sobre o mármore da mesa, dando-lhes voltas e mais voltas até ficarem bem baralhadas. A mistura só ficava completa com um ligeiro toque com o cotovelo direito. Agora sim, os jogadores podiam escolher as sete pedras. Quem tinha o carrão despachava-o logo. E pronto começava o jogo. Fazia-se um silêncio absoluto na sala. Ninguém falava, não se ouvia uma tossidela. Só se notava o toque do marfim das pedras contra o mármore da mesa. O silêncio só era cortado pelo riscar rápido dos fósforos na lixa da caixa e pelo inspirar abafado dos Definitivos. E só as moscas, essas ignorantes do prazer do jogo, ousavam importunar os campeões.
 
De um lado, Luís Azevedo que pensava cada jogada com a paciência do chinês que define a estratégia da aranha. Era ele que registava para a história a pontuação de cada jogo numa folha de papel pardo. Do outro, Zé Marinhais, óculos na ponta do nariz, um tossir rouco e profundo, usava a manha como quem goza com o parceiro. As pedras, por fora negras e brancas por dentro, iam escorrendo lentamente no mármore e dando forma a um caminho esquisito formado com cruzamentos e entroncamentos vários. Os dobles atravessados. As cenas com as cenas, as quinas ligadas às quinas, os brancos agarrados aos brancos. E no final de cada jogo um dos dois dizia em voz quase inaudível: dominó.
 
A meio da jogatana, o fumo do tabaco encobria os jogadores e a malta que espreitava os competidores já deitava fumo pelos olhos. Como não havia meio das moscas acalmarem e respeitarem os jogadores decidi ir buscar o sheltox e dar umas bombadas. Se a coisa já estava nublada ainda ficou pior. O ar ficou completamente irrespirável, criou-se um nevoeiro intenso, todo o café tossiu tirando dos bolsos os lenços de assoar para guardar as escarretas que saíam de sopetão da garganta. O fumo era tanto que o Zé Bisalho, óculos colados com adesivo e com lentes de fundo de garrafa, tinha entrado para meter o totobola, gritou “isto está tudo a arder, alguém que vá chamar os bombeiros”. Ninguém lhe ligou é claro, mas toda a gente esticou as orelhas ao ouvi-lo dizer “acabei de ser colhido no Largo quando tentava pegar de cernelha”. Parou tudo. Era sinal de que iria haver prosa e da boa só interrompida para o humedecimento do fôlego com um traçadinho de meio litro. Zé Bisalho explicou em pormenor e em português impecável a cena digna de uma autêntica faena tauromáquica. Toda a gente queria saber pormenores do sucedido.
 
Noutra mesa, de perna cruzada em frente ao tabuleiro de madeira, o Catorze Cavaca dava uma abada das antigas a um tipo qualquer que tinha a mania que sabia jogar às damas. O Catorze agarrava nas peças que ia comendo e juntava-as nas mãos até não caberem mais. A fanfarronice do tipo não durou mais que três minutos. Nem o fumo que enchia o central lhe valeu para esconder uma dama sorrateira. Foi cilindrado sem apelo nem agravo e abandonou o ringue com o rabo entre as pernas. Catorze Cavaca era o campeão das damas e não dava abébias a ninguém.
 
Junto à mesa do canto, a malta batia uma soneca de meia hora à espera que o Martinho Branco decidisse se devia mexer o bispo ou a torre enquanto o Pim Pim exibia a calma adquirida ao serviço dos rangers tatuada no braço esquerdo com a manga arregaçada até ao ombro e o Direito deitava fumo pelos neurónios pois estava mesmo a ver o cheque mate ali escondido à espreita do rei. Estes e outros artistas na arte da guerra transferida para o tabuleiro queriam imitar o Spassky e o Fischer os maiores xadrezistas da época mas havia até quem dissesse que o russo e o americano eram apenas aprendizes ao pé dos xadrezistas do Central.
 
Como era sexta-feira os aficcionados do 1 X 2 faziam bicha para meter o totobola. Luís da Luz, o feitor do Casal das Flores, um homem de grande sabedoria mas que não sabia uma letra do tamanho de um comboio e já tinha morrido uma vez debaixo de um tractor, Manuel Padeiro, um industrial do paposseco que exibia um cachucho no anelar, e Joaquim Mendes de bigodinho fino sobre o lábio, o mais castiço empresário e mecânico de 4L da região, contavam o dinheiro que já tinham posto de lado para uma almoçarada das antigas com a sua sociedade do totobola, de que fazia parte também o dono do Central, e na qual o professor Mineiro se quis integrar mas nunca conseguiu.
 
Nesta sociedade do totobola ninguém percebia nada de futebol e nem sequer sabia os nomes dos clubes. Jogavam à sorte, sem tácticas nem estratégias. Jogavam só pelo prazer de estarem juntos e do convívio das almoçaradas. “Desta vez vamos jogar só para o 12, não queremos ser ricos que isso dá muita chatice” dizia o Luís da Luz enquanto saboreava o café e engolia de um gole o bagacinho da ordem.
 
Toda a gente arreganhava a podoa porque toda a gente sabia que nunca ninguém até aí tinha tido um 13 no totobola a não ser o Fernando Manha mas esse não contava porque era especialista, jogava com várias triplas e uma carrada de duplas e conhecia de cor as equipas que ganhavam e perdiam em todos os jogos. Os outros eram doutro campeonato, jogavam pelo prazer da almoçarada, só queriam contar até 12 e sabiam que ser rico dá muita chatice.

Actualizado em ( Quinta, 14 Agosto 2014 11:42 )