Casa Vitória

Domingo, 09 Novembro 2014 12:15 André Lopes Já fui uma taberna
Versão para impressão
Vitória Fonseca está há 41 anos a tomar conta da taberna que agora é um café
 
Já fui uma taberna (4)
 
É muito comum ouvir dizer que Riachos é uma terra de cafés e cabeleireiros. Se assim é, então podemos dizer que noutros tempos foi uma terra de barbeiros e tabernas. Às vezes, anexados às tabernas estavam as lojas, outras vezes estavam barbearias. O que é há mais de 40 anos a Casa Vitória, na Estação, foi em tempos a taberna do Santo Antoninho, que fazia “o melhor comer” de Riachos, e a taberna do Abílio, que ali abriu o primeiro cabeleireiro de mulheres da aldeia.
 
A intensa actividade que havia permanentemente na zona da então chamada Estação de Torres Novas garantia sempre muita clientela às duas tabernas que ali havia. Havia sempre gente de passagem para a estação, os próprios trabalhadores da via e os trabalhadores das indústrias e armazéns das redondezas (armazém da CUF, os armazéns do trigo e de fertilizantes, a fábrica do álcool, a Torrejana, a Unital, a mercearia do Manel da Estação, os tractores, os camiões, os carros de bois e, claro, a estação dos comboios que trazia diariamente gente de tão longe quanto Minde). Falando com testemunhas da vida na pacata aldeia rural de meados do século XX, os adjectivos sobre o movimento na Estação variam sobre um mesmo significado: “doido”, “diabólico”, “maluco”.
 
Era assim especialmente ao meio-dia quando as tabernas (apesar de abrirem cedo e fecharem tarde) se enchiam de gente. O vinho consumido era muito, especialmente pelos trabalhadores como os “putos das sacas”, que carregavam às costas sacas que pesavam até 100 quilos da estação para o armazém da CUF (onde hoje está a oficina do Coelho). 
 
O máximo que a memória chega é à taberna do Santo Antoninho, que lá esteve até 1955. O Santo Antoninho era António Antunes, um exímio cozinheiro da Escola Prática de Cavalaria (onde hoje está a Escola Prática de Polícia) em Torres Novas, que abriu em Riachos a taberna que tinha “o melhor comer” ali à volta. Cozinheiro a vida toda, quase nunca era visto na taberna, pois o seu lugar era ao fogão. Era Justino, o filho, que estava ao balcão, personagem eternizada como o “Abrenúncio”, devido à expressão que ouviu numa cerimónia religiosa e que passou a vida a repetir para gáudio dos clientes. Nos anos 50, a família Antunes mudou-se para o centro do Entroncamento para explorar a casa Vila Franca. O Abrenúncio abriu mais tarde duas tascas, uma junto à Unital e outra logo junto à ponte do Paul, perto do local onde mais tarde surgiu uma conhecida casa de fataça e enguia.
 
Abílio de Matos Branco, o barbeiro do outro lado da estrada, foi o senhor que se seguiu. Manteve os dois negócios durante algum tempo, teve um barbeiro a seu cargo e o jovem Alberto que vendia jornais de porta a porta. O Alberto Barbeiro, homem de meticulosa memória, foi herdeiro de ofício do Abílio e garante que o Abílio veio do Pedrógão em 1939 para aprender a ser barbeiro com o Artur Manha, nos Riachinhos. Alberto lembra-se, por exemplo, que se vendia tanto vinho que às sextas-feiras a barbearia nem sequer abria, porque era preciso fazer as contas dos clientes que durante a semana entravam e saíam durante todo o dia para beber um copito de cada vez.
 
No tempo da taberna do Santo Antoninho, a mais antiga de que há memória, era o filho Justino que trabalhava ao balcãoEntretanto o Abílio foi para Lisboa aprender a ser cabeleireiro de mulheres e, quando regressou, abriu ao lado da taberna um espaço dedicado a elas. Nessa altura, no Largo já havia a Maria do Céu, que cortava o cabelo a mulheres, mas foi na taberna/cabeleireiro do Abílio que foram feitas as primeiras permanentes da terra: “saíamos de lá com uns caracóis que até parecíamos umas pretas”, diz a rir-se uma das actuais clientes da Lolita, a filha que herdou o salão que o Abílio abriu na zona do Largo, menos de uma década depois de ter ficado com a taberna.
Sempre arrendada a Ermelinda Marques (irmã do Dr. José Marques), no par de anos que se seguiu a taberna foi gerida por Feliciano Granata (da Caveira, também barbeiro, é um dos mais carismáticos adeptos do Atlético) e pelo Redol (da Golegã, trabalhador dos Luzes).
Até que veio outro dono efémero, o José Fernandes, pai da Vitória. Deixou a taberna que tinha no Rossio de São Sebastião, em Torres Novas, numa esquina que já não existe, para vir para a Estação. Dois anos depois, em 1970, deixou o negócio à filha, originária do Casal do Picoto, que andava então a vender têxteis nos mercados com o marido. Quando morreu o marido, Vítor Fonseca, mudou o nome para Casa Vitória e só há poucos anos actualizou o alvará, tornando a taberna em café.
 
Aspecto da velha sala dos «comeres», com a pipa ao fundoO fim das tabernas veio com as mudanças da sociedade, mas veio principalmente pela via administrativa, quando o governo deixou de conceder alvarás de taberna, depois de querer impor os balcões de inox e proibir as pipas, entre outras exigências em nome da “higiene” nos estabelecimentos que não se coadunavam minimamente com a realidade existente. A saudade da taberna e a crítica estão bem presentes no discurso da Vitória.
 
Peixe frito, petinga de escabeche, chispe, mão de vaca, cabeça de porco, sardinhas de cebolada, orelha temperada, ensopado de enguias, petinga albardada e no forno, eram alguns dos petiscos da Vitória. “Isso era quando deixavam trabalhar a gente, agora é uma tristeza, não nos querem deixar trabalhar. Com a licença de taberna podia fritar tudo, fazer tudo, ninguém implicava com a gente”, diz ao lembrar-se de coisas impensáveis no dia de hoje, como fritar pastéis de bacalhau num fogareiro a petróleo ao pé do balcão feito de travessas da linha do comboio. Às vezes fazia-os especificamente para degustação do Manel Pescador, que trabalhava na fábrica do álcool e era um cliente amigo. 
 
Lembra-se dos nomes dos velhos clientes, lembra-se de trabalhar de noite e de dia para atender toda a gente e agora até lhe “chegam as lágrimas aos olhos” quando, de vez em quando, faz aqueles cozinhados para si e para a família, e que antes fazia quotidianamente para a freguesia.
A familiaridade com os clientes é o aspecto mais valorizado pela Vitória, quando queremos saber da sua vida. Sabe estimar os fregueses e sabe do negócio que lhe está no sangue desde nova. “Os meus clientes têm muita estimação pela casa, por mim, pelos meus filhos, e também são eles todos estimados. Até estimo muito alguns mais novos, filhos daqueles que já cá vinham. Tenho muita estimação pelo balcão e por os aviar. Tenho muito amor por isto, mas agora é só lutar”, lutar para manter a casa, diz.

Enquanto fizemos a entrevista, quatro clientes entraram em momentos separados. Cada um, ao reparar que a Vitória estava ocupada, disse olá e foi-se aviar. Entretanto, telefona um agricultor a perguntar se a Vitória podia abrir mais cedo no dia seguinte, para servir o café às mulheres que vão para o campo. É “a amizade atrás do balcão”.
Vitor e Vitória Fonseca com os filhos Ana Cristina (ao colo) e Moisés. Nos primeiros anos no quintal, com o senhor Cristo, que ajudava na cozinha
 
 
Actualizado em ( Quarta, 12 Novembro 2014 12:30 )