Pedro Barroso: “É muito bom voltar a cheirar o pó do palco”

Terça, 25 Outubro 2016 11:37 Anda daí mais eu
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Eu acho que a última coisa de que um homem pode abdicar é do seu sentido crítico, senão deixa de valer a pena viver
 
Começou há muitos anos de volta das canções, criando diferentes formas de compor a vida, em sons e vozes que percorrem a sua própria memória. Há uns tempos tropeçou na vida, lutou por ela, agarrou-se à coragem e à força de querer outro caminho. As más notícias correm depressa, mais ligeiras que o vento, Pedro Barroso esteve literalmente às portas da morte. 
Embora saiba que a luta pela sobrevivência é sempre uma luta ingrata, porque “percebemos que nos aproximamos de qualquer coisa que não podemos combater e que nos está reservada”, Pedro Barroso vai, timidamente, regressando à vida.
Experimentou há pouco fazer um espectáculo ao vivo em Pedrógão Grande e conseguiu aguentar-se 40 minutos. O seu regresso aos palcos será, porventura, a sua maior satisfação, e está a ser preparado em força: para além de concertos no Tivoli e no Olga Cadaval, a pintura do Pedro Chora e os posts do facebook, já está na forja um novo CD, lá para o fim de 2017.
A acrescentar a tudo isto, as comemorações do centenário do nascimento do seu pai, António Chora Barroso, patrono da Escola de Riachos, que também completa este ano um quarto de século de existência, foi mais um pretexto para uma conversa com Pedro Barroso, 66 anos, como se fosse preciso algum motivo para além dos que espreitam por trás de cada canção, de cada pintura ou de cada poema. 
Aliás, as várias facetas do artista já lhe trazem dificuldades quanto à memória da arte que cria, para preservar condignamente os artefactos que marcam uma história criativa já com 47 anos, acervo que procura mostrar num local onde as pessoas nele se possam desvendar.
No meio da tempestade que agitou o mar da vida, Pedro Barroso acalma a negrura do tempo e entende que a última coisa de que um homem pode abdicar é do seu sentido crítico. Se não for assim, deixa de valer a pena viver.
Carlos Tomé
 
Se fosse vivo, o teu pai [António Chora Barroso], faria agora 100 anos, não é?
O meu pai teria feito 100 anos dia 10 de Abril passado. O que se fez foi esperar que a Escola reabrisse o ano lectivo e aproveitou-se também o quarto de século de vida da Escola [Chora Barroso] e os 20 anos que tem o nome do patrono. E juntou-se tudo isto para haver algum tempo para preparar uma peça escultórica que ficou lá.
 
Essa peça escultórica é de tua autoria?
É de minha concepção mas foi execução do Alexandre Alves, podemos dizer que é de minha criação mas não execução. Fiz o desenho. A Escola pediu-me uma ideia e eu disse, olha a cultura representada por um livro, e o conhecimento, as ideias, representadas por uma vela com uma chama acesa, e a placa celebrando de forma simples, discreta mas marcante como foi a passagem do meu pai por esta terra, que foi mais importante do que nós nos dávamos conta na altura. 
 
Na tua opinião, a celebração de um centenário tem algum significado especial para Riachos?
Quando uma terra começa a ter uma celebração de 100 anos é uma terra que já começa a ter individualidades com história, com a dignidade suficiente para haver um respeito por essas pessoas. E como se sabe, muito pouca gente saía desta terra para estudar fora, para ir tirar um curso. Obviamente que estamos a falar duma realidade completamente diferente da de hoje, há 70, 75 anos.
 
O teu pai era um homem com um grande gosto por Riachos?
Como eu disse lá na intervenção na Escola, este homem pelo amor que teve a esta terra nem que lhe façam uma estátua… bom, não fizeram mas fizeram uma escola imensa com o nome dele, que é muito mais útil à comunidade.
 
Na tua opinião, a Escola Chora Barroso respeita a memória do teu pai?
Respeita muito. E tem sido importante essa ligação da família com a Escola porque custa-me que alguns alunos passem por escolas que têm nomes que são apenas quase como uma tabuleta que está a indicar, olha vai para a Artur Gonçalves, vai para a Maria Lamas, mas os miúdos não sabem quem foi o Artur Gonçalves, a Maria Lamas ou o António Chora Barroso, percebes. Neste caso concreto causava-me alguma tristeza que os alunos não soubessem quem é que ele tinha sido.
 
O teu pai distinguiu-se essencialmente como professor, não foi?
Foi um homem que foi professor a vida inteira e que viveu como professor e que tudo quanto escrevia era sempre para ensinar, sempre, nas monografias, até na poesia, a própria poesia é pedagógica. Ele foi sempre assim e como pai também.
 
Pode-se dizer que a relação que ele tinha com esta terra era de amizade profunda e que tinha também um conhecimento profundo da mesma?
Eles eram dois irmãos, e ainda haverá gente que se lembra tanto do Alfredo Pedro como do António Pedro. Aliás, o meu pai só não era mesmo António Pedro porque o sacristão no dia do baptismo tinha almoçado bem e bebido bem e os seus pês não lhe estavam a sair nada bem, então ele terá dito “ó D. Emília desculpe lá, mas faz muita diferença se a criança ficar só António Chora Barroso, que os meus pês maiúsculos não me estão a sair nada bem?”. Dantes, aquilo era com caneta de aparo com caligrafia à antiga. Eu dei por mim a meditar que o meu tio por questões de doença foi internado, teve problemas respiratórios, e ficou-se por cá, fez a sua vida por cá. Sempre foi um homem do conhecimento, um grande dinamizador do teatro em Riachos mas ficou sempre na terra, e o meu pai, se calhar, tinha gostado muito mais de cá ficar e não ter andado fora, teria sido ainda mais estudioso do regionalismo, dos costumes locais, das tradições, teria feito um trabalho etnográfico ainda maior se realmente tivesse ficado por cá.
 
Achas que o livro que o teu pai escreveu em 1954, “Riachos, terra do Ribatejo”, foi importante para se conhecer melhor esta terra e aprender a gostar dela?
Esse livro está esgotadíssimo. Tive o gosto de saber na cerimónia da Escola que há um professor que fez um estudo sobre essa monografia, que até hoje, e tem sessenta e tal anos de publicada, é a única monografia que se fez sobre esta terra, e na qual ele tem uma inesperada visão de futuro, tendo a noção de que o trabalho que estava a fazer era obviamente limitado no espaço e no tempo e que seriam as gerações do futuro a completá-lo devidamente.
 
Escreveu também para jornais, não foi?
O meu pai escreveu inúmeras peças sobre histórias, tradições, famílias, datas, acontecimentos, eventos vários, no Almonda, no Correio do Ribatejo, no Riachense que saía sempre por altura da Festa da Bênção do Gado e do qual era sempre invariavelmente chefe de redacção, e em várias outras publicações que ele fazia. Promoveu jornais escolares, promoveu nas várias escolas publicações para que as pessoas conhecessem a terra e depois os alunos fizessem trabalhos, pequenas monografias das visitas de estudo, o resumo do que tinham aprendido, portanto a sua ligação, estando em Lisboa, distante da terra, era permanente.
 
As obras do teu pai estão esgotadas. Teria sentido fazer-se uma reedição? 
Estamos a falar de vários livros, todos eles esgotados e retirados do mercado, impossíveis de se adquirirem, nunca se fizeram segundas edições. Podia pensar-se nisso, mas eu deixo isso a outros, sinceramente já tenho tanta tarefa, e tudo isto está a apanhar-me num momento complicado da minha vida, que eu deixo à Escola, que está mandatada e com responsabilidade cultural, a função de criar caminhos nesse sentido. O mais que posso fazer é ir à Escola ainda este ano fazer uma palestra maior do que nesta celebração, falar sobre o patrono e em que os miúdos ponham perguntas, um encontro descontraído. Farei isso e já prometi também instituir um prémio anual António Chora Barroso que terá um pequeno troféu e será consubstanciado em qualquer coisa, não necessariamente pecuniária, mas livros, coisas de cultura, cada ano será sobre uma matéria de arte, pintura, literatura, eventualmente até num ano, porque não, um estudo sobre o próprio patrono. Vamos promover isso para que os alunos se habituem a estudar o que é que ele foi. Mas tem tido sempre o cuidado de proporcionar esse conhecimento, até porque eu já por várias vezes tenho tido contacto com alunos que me pedem dados porque na Escola o professor lançou a ideia de se fazer esse tipo de investigação sobre quem é que foi o patrono e o que é que ele fez.

Já prometi instituir um prémio anual António Chora Barroso que terá um pequeno troféu (...) em cada ano será sobre uma matéria de arte (...) eventualmente até num ano, porque não, um estudo sobre o próprio patrono

Riachos tem outras figuras que mereçam também uma referência histórica?
Hoje em dia Riachos está, como eu costumo dizer, uma cidade, tem todas as prerrogativas e todas as condições para o ser, e eu falo com conhecimento de causa porque conheço as cidades todas deste país e realmente muitas delas são metade daquilo que Riachos já pode apresentar em qualidade de vida e em estruturas, e tem figuras que já de si mereceriam ter essa celebração. Acho que uma terra precisa dessa história, dessa memória. Precisa de ter a coragem de plasmar nas suas ruas, praças, jardins, nomes que foram referência e que passaram por aqui.
 
Estás a pensar em alguém em concreto?
Vejo com alguma pena que grandes jornalistas como Ângelo Granja, que aqui viveu, grandes actores como Mário Pereira, que aqui viveu, que aqui foram criados e estiveram cá muitos anos, que sempre referiram Riachos com simpatia durante as suas vidas, grandes bailarinos como o António Veríssimo, não tenham ainda a celebração plasmada nas ruas. Acho que era importante que tivessem.
 
E o Pedro Barroso não merece essa celebração?
Não, essas coisas são por morte, normalmente…
Pois, é verdade, mas não te estou a desejar a morte, obviamente…
Quer dizer, como não acredito na vida eterna, eu realmente gostaria que um dia a minha terra me lembrasse, mas isso fica para os vindouros decidirem ou ficará para honra dos meus filhos e dos seus descendentes.
 
A tua veia artística, que se manifesta de muitas formas, vem do teu pai? 
O meu pai não tinha habilidade nenhuma para a música, isso era o meu tio João Chora, que lia qualquer pauta à primeira, oxalá eu o conseguisse fazer, foi um músico emérito e fez vida de músico. Mas seguramente que herdei este amor, este gosto de ensinar. Eu gosto imenso de ensinar, tenho essa sedução e isso é muito herdado do meu pai, esse gosto pelo ensino, esse gosto por ir à história, isso vem nitidamente do professor Chora Barroso. 
 
Deixemos por agora o teu pai e foquemo-nos em ti. De há uns tempos para cá tens sofrido graves problemas de saúde. Tens aproveitado estes tempos de paragem, digamos assim, para te dedicares mais a outras formas de arte?
Tenho desenhado muito. Tenho-me dedicado mais à pintura. Fiz recentemente uma exposição muito grande, com quarenta e tal quadros, quer dizer, não fui eu, foi o Pedro Chora, pois eu divido sempre os dois personagens. É engraçada a reacção das pessoas, pois o Pedro Chora só pinta mulheres, a sua obra é dedicada ao eterno feminino, o que é um bocado recorrente e massacrante mas enfim, é uma tara que ele tem e eu já tenho tido várias conversas com ele e não lhe consigo tirar essa ideia da cabeça. Mas o Pedro Barroso, o que paga os pinceis, porque o outro morria à fome se tivesse que viver da pintura, tem aproveitado para ir preparando o próximo CD, já tem muitas coisas que vai vendo, revendo, experimentando, ouvindo, alterando.
 
E já tem nome, esse novo CD?
Ainda não, ainda não. Já pensei em “Raiva de viver” mas desisti porque acho que era demasiado óbvio, portanto estou a ver se me surge um novo título, mas vai andar por aí, uma sugestão de quem já merece alguma paz depois de ter passado por tanta guerra. É um disco que vai sair muito bonito, mas só sairá lá para o fim de 2017, se tudo correr bem. As pessoas crentes costumam dizer se Deus quiser, eu digo, bom se este velho corpo aguentar, se a medicina conseguir ajudar, se tudo isso correr de acordo com os melhores optimismos, se conseguir fazer esse trabalho que ficará a marcar uma espécie de ponto final na minha produção discográfica.
 
E quanto a concertos ao vivo, estão nos teus planos para breve ou já os puseste de lado?
Imagine-se que apareceram-me agora convites para fazer o Tivoli em Lisboa e o Olga Cadaval em Sintra, que é talvez o auditório mais majestoso que existe na zona oeste e centro, uma coisa lindíssima, moderníssima, e que há muitos anos eu tentava fazer e que agora de repente consigo marcar para as celebrações de Abril.
 
Já experimentaste fazer agora algum espectáculo ao vivo, ou ainda não te sentes com força para isso?
Já reapareci há pouco num espectáculo do meu filho Nuno no Pedrógão Grande, um auditório muito jovem, muito recente, e consegui aguentar uns 40 minutos, ainda muito fraquinho, mas as pessoas foram muito carinhosas comigo, foi um regresso muito bom, é muito bom voltar a cheirar o pó do palco, as pessoas aplaudiram de pé e sentiram que era um regresso ainda tímido, porque estes regressos são sempre muito tímidos. Voltei a fazer um bocadinho de caminhada, estou a tentar reconstruir-me, erguer-me, assim o corpo o permita.
 
Quer dizer, as coisas vão devagar mas no bom caminho, não é?
Vamos com calma, vamos tentar reconstruir aqui a carcaça, isto é um problema, é que não há peças sobressalentes como nos automóveis e infelizmente os últimos três anos têm sido um problema pegado, depois de uma paragem cardio-respiratória, estava com 170 quilos, caí no chão e pronto, não é…
 
Durante esses períodos muito complicados para a tua saúde, de tal gravidade que estiveste às portas da morte, alguma vez sentiste um chamamento divino, chamemo-lo assim, algo que te tenha feito aproximar de um sentido religioso para a vida?
Quando nos dizem a palavra que ninguém quer ouvir, nós temos um sentimento de finitude pleno, total, absoluto. Telefonei para todos os meus amigos, para os meus músicos, para as pessoas de quem gosto e deixei publicamente essa despedida na internet, e fiz um grande silêncio. Repara, eu fiz uma cirurgia de nove horas, o problema estava a espalhar-se, eu estava sem energia nenhuma, tinha perdas de sangue muito grandes, estive dois dias no hospital a levar sangue até se descobrir a causa e ao descobrir-se levei a maior chapada que a vida nos pode dar, virmos a descobrir da boca de um médico o mal que temos. É evidente que esta luta é sempre uma luta ingrata, porque nós próprios percebemos que nos aproximamos de qualquer coisa que não podemos combater e que nos está reservada. Por outro lado, já tinha passado por um período de 15 dias de coma há dois anos, quando tive uma paragem cardio-respiratória, aí sim, tive uma sensação de aspiração, aquilo que algumas pessoas descrevem habitualmente como túnel branco, eu não tive essa sensação mas sim uma sensação de zona intermédia, em que há períodos de alguma ausência, porque o coma não é um fechamento total, mas em 99 por cento do tempo é, mas há momentos de alguma lucidez em que se sofre muito com essa indecisão. Agora continuo exotericamente igual, quer dizer, isso não me afectou, não me aumentou nem diminuiu qualquer tipo de crença. Continuo a ser perfeitamente agnóstico.
 
Falaste há pouco nas diversas áreas da arte em que te mexes, entre elas a escrita. Estás a pensar publicar brevemente mais algum livro?
Tenho tanta coisa no facebook que eu tenciono coligir aquilo que vou postando lá, e como a minha vida tem estado cheia de obstáculos vou-lhe chamar provavelmente “Postes”, pois são os postes que surgem na vida, onde a gente dá marradas, e como no facebook se chamam “posts” sem “e”, eu vou fazer talvez esse trocadilho, que são sobre comentários de vida de uma pessoa que nunca abdicou do seu próprio sentido crítico, aliás eu acho que a última coisa de que um homem pode abdicar é do seu sentido crítico senão deixa de valer a pena viver. Mesmo em défice de capacidade física não deixarei de pensar, de ser crítico, de postar no facebook, o que me dá também um certo gozo porque comunico com milhares de pessoas que lêem aquilo, que me dão o seu feedback, o seu comentário, isso é importante, estar atento, ser activo.  
Actualizado em ( Sexta, 25 Novembro 2016 11:44 )